Texto publicado no Jornal A Nova Democracia no dia 04/08/2021. Escrito por – Sebastião Ilar.
“Eu não inventei as Ligas
Elas são a flor
Que se abre no lodo”
Francisco Julião.
Ao contrário do que muitos pensam, as Ligas Camponesas não começaram com Francisco Julião, muito menos começaram como organização de luta pela terra. Na verdade, começaram com a iniciativa de João Firmino, em 1955, de defender a “reivindicação dos mortos”; defender que todo camponês, depois de morto, tivesse o direito de descansar em paz; aquele que nunca teve terra poder ter depois de morto, sete palmos abaixo da terra e um caixão. Para alguns leitores pode soar estranho: por que lutar pelos mortos? Qual o sentido? A isso Josué de Castro nos responde quando diz que para o camponês do nordeste a vida não lhe pertence, dela tira apenas o cansaço, a miséria, as formas feudais nas quais é obrigado a trabalhar na terra do latifundiário; neste contexto a morte aparece para ele como sua saída, seu único direito que ninguém pode retirar.
Contudo, uma realidade cruel se apresentava: o pobre neste país não tem direito nem de se enterrar. Nos interiores do Brasil os caixões são da prefeitura, e não é incomum que tenha-se que retirar o morto antes de enterrar e devolver o caixão às autoridades locais. Por conta dessa situação nasce a primeira Liga Camponesa em Engenho da Galiléia, mas assim como nas primeiras revoltas camponesas do Nordeste, no princípio, se apresentavam como revoltas de cunho religioso, messianico e tinham em si profundo caráter de classe, logo isso ocorre com as Ligas.
O INÍCIO: ‘PRESIDENTE DE HONRA’ E O MEDO DO COMUNISMO
De início, em um gesto servil, os camponeses convidam para ser presidente de honra da Liga o senhor de terras, o latifundiário do Engenho da Galiléia, Oscar Arruda Beltrão, que aceita e se faz presente quando a Liga é fundada, até então chamada de “Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco”. Mas a simples reivindicação de algo além do que simplesmente a ajuda funerária, como conseguir algumas sementes e instrumentos melhores de trabalho, já mostrava timidamente que o movimento tendia adquirir um caráter mais social e combativo – para a situação da organização do movimento camponês no nordeste à época – e isso fez com que outros latifundiários locais avisassem ao senhor de terras que aquilo que ele havia aceitado era uma “artimanha dos comunistas”.
Logo o latifundiário se viu assustado, com medo de que estivesse permitindo uma infiltração comunista em suas terras. O que queriam aqueles homens? Roubar suas terras? Destruir a sociedade? Implantar o socialismo? Parar de pagar o cambão, o foro? Destruir a casa grande e socializar o engenho? Absurdo! Não poderia permitir aceitar tamanha ameaça, mandou fechar a Liga… a partir desse momento a coisa muda.
E A RESISTÊNCIA VEIO…
Os camponeses não aceitaram aquela atitude, resolveram resistir ao fechamento! A partir desse momento a “Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco” se tornará um movimento que lutará não só pelos mortos, como pelos vivos; como Josué de Castro colocara: foi tratando dos problemas da morte que os camponeses do Engenho da Galiléia abriram seus olhos para a vida.
O latifundiário ameaçou expulsá-los, chamar a polícia, chamar seus capangas e coisas do gênero; a cada ameaça mais os camponeses ficaram bravos e animados para o dia em que iriam botar para correr aqueles parasitas de suas terras, onde viviam e produziam anos a fio, e então novamente decidiram que iriam resistir.
É aqui que entra um importante personagem dessa história: o advogado Francisco Julião.
UM ADVOGADO EM DEFESA DOS CAMPONESES POBRES DO NORDESTE
Francisco Julião Arruda de Paula nasceu em 16 de Fevereiro de 1915 no Engenho Boa Esperança, estado de Pernambuco. Falar de Julião é falar dos camponeses pobres e, principalmente, das Ligas Camponesas, todavia ele mesmo provém de uma família dona de engenhos.
Julião, de uma forma ou de outra, traiu sua classe de origem e essa foi a melhor decisão que já tomou. Estudou em bons colégios do Recife e, quando as coisas não iam bem nos Engenhos da família, começou a lecionar e se matriculou na faculdade de Direito, formando-se em dezembro de 1939.
Fato interessante é que – apesar de não ser ativo na vida política durante seu tempo de faculdade, mas muito influenciado pela oposição ao Estado Novo – Julião passou um dia detido no DOPS pouco tempo depois da formatura.
Desde o início de sua carreira, quando montou um escritório de advocacia em 1940, Julião buscou defender os camponeses pobres do nordeste. Em um processo relativamente rápido, Julião foi de um simples advogado dedicado a defender os camponeses para um agitador camponês de grande capacidade política e que incentivava os camponeses a tomarem todas as terras do latifúndio.
Defendendo por anos a causa dos posseiros da zona da mata pernambucana, Julião se tornou deputado e prestava ajuda principalmente a aqueles que não tinham dinheiro para pagar os impostos feudais exigidos nos latifúndios nordestinos.
Ganhando respeito das massas, principalmente após defender diversos trabalhadores que viveram por mais de 40 anos em terras que haviam sido recém compradas pela usina Santa Terezinha, que ameaçava expulsá-los, Julião foi procurado pelas famílias camponesas de Engenho da Galiléia. Julião, nessa época, já tinha percebido que a disputa jurídica, por si só, não estava resolvendo nada, pois sempre o camponês acabava perdendo as questões.
Nesses grandes acontecimentos históricos que estavam no tempo certo de acontecer, Francisco Julião conhece a situação do engenho e decide defender o que era a primeira Liga Camponesa.
EXPANDEM-SE AS LIGAS!
Com suas intervenções na Tribuna denunciando os crimes hediondos do latifúndio, não só em Engenho da Galiléia, como em todo o nordeste do Brasil, principalmente Pernambuco, Julião se torna um agitador social. Com a crescente atuação das Ligas no campo, passam a existir cada vez mais núcleos por toda a zona da mata pernambucana e logo ultrapassa os limites do estado, se espalhando por toda aquela região do Brasil (do Maranhão até Sergipe). Todos os camponeses agora tinham com o que se defender! E isso obviamente não foi bem visto pelos círculos dominantes nordestinos…
“Falava-se delas (as Ligas) como se fosse o próprio apocalipse e de Julião como se fosse o próprio anticristo. Foi neste momento que os Estados Unidos da América redescobriram o Nordeste”.
A perseguição sempre existira, mas a dimensão de sua ampliação foi tal que era como se naquele momento o Nordeste estivesse a beira de uma revolução comunista, que dali para o outro dia aqueles camponeses finalizariam o trabalho que a tal “intentona” não havia feito em 1935, quando entregou Natal.
O jornal New York Times nos artigos publicados por Tad Szulc em 31 de Outubro e 1 de Novembro de 1960 estampava em suas páginas: “Os marxistas estão organizando os camponeses no Brasil!” e, para completar, grafava: “O primeiro-ministro de Cuba, Fidel Castro, e o Presidente do Partido Comunista da China, Mao Tsetung, estão sendo apontados como heróis a serem seguidos pelos camponeses nordestinos, trabalhadores e estudantes”. Nessa sanha anticomunista do jornalista Tad Szulc sobrou até para a capital de Pernambuco, o Recife, apontado por ele como “o mais forte centro comunista do Brasil”.
Quanto mais os reacionários batiam, mais a Liga crescia; havia um espírito de revolta muito grande ali como em todo o Brasil. Com a chegada dos anos 60 e as ameaças de golpe militar já muito claras, as Ligas Camponesas ainda eram uma preocupação muito grande para as classes dominantes, várias lideranças das Ligas ao longo daquele tempo foram sendo assassinadas por jagunços e policiais amparados pelo estado, e nesse contexto culminou-se o golpe militar.
O GOLPE DE 1964 E A REPRESSÃO ÀS LIGAS
Assim como ocorreu em Trombas e Formoso (ver A luta de Trombas e Formoso e a sua similaridade com o Brasil atual) após o golpe militar a perseguição foi muito grande, como se pode constatar parcialmente no filme Cabra marcado pra morrer: os dirigentes e os apoiadores perseguidos, Julião dentre eles. Sendo reconhecido pela polícia após dias disfarçado, Julião é preso; depois de solto ainda passa um ano buscando exílio, até que se instala no México, mais especificamente em Cuernavaca onde faleceu na década de 90.
O resto dos dirigentes camponeses não têm a mesma sorte do deputado e acabam tendo que fugir para não serem presos, trocando de identidade e indo para cidades escondidas no interior do nordeste. Dessa forma, as Ligas vão sendo desarticuladas e a repressão consegue por anos, e à custa de muito sangue, calar o movimento camponês combativo, especialmente no nordeste. A falta de uma vanguarda revolucionária e o atraso de algumas concepções decorrente da ausência dessa vanguarda, fez com que, ao culminar-se o golpe militar de 64 as Ligas não disparassem um tiro, dessa forma encerrou-se um importante capítulo do movimento camponês no Brasil. Como de praxe na ação do velho Estado, foi mais um capítulo encerrado à bala.
Ao contrário do que muitos pensam, as Ligas Camponesas não começaram com Francisco Julião, muito menos começaram como organização de luta pela terra. Na verdade, começaram com a iniciativa de João Firmino, em 1955, de defender a “reivindicação dos mortos”; defender que todo camponês, depois de morto, tivesse o direito de descansar em paz; aquele que nunca teve terra poder ter depois de morto, sete palmos abaixo da terra e um caixão. Para alguns leitores pode soar estranho: por que lutar pelos mortos? Qual o sentido? A isso Josué de Castro nos responde quando diz que para o camponês do nordeste a vida não lhe pertence, dela tira apenas o cansaço, a miséria, as formas feudais nas quais é obrigado a trabalhar na terra do latifundiário; neste contexto a morte aparece para ele como sua saída, seu único direito que ninguém pode retirar.
Contudo, uma realidade cruel se apresentava: o pobre neste país não tem direito nem de se enterrar. Nos interiores do Brasil os caixões são da prefeitura, e não é incomum que tenha-se que retirar o morto antes de enterrar e devolver o caixão às autoridades locais. Por conta dessa situação nasce a primeira Liga Camponesa em Engenho da Galiléia, mas assim como nas primeiras revoltas camponesas do Nordeste, no princípio, se apresentavam como revoltas de cunho religioso, messianico e tinham em si profundo caráter de classe, logo isso ocorre com as Ligas.
O INÍCIO: ‘PRESIDENTE DE HONRA’ E O MEDO DO COMUNISMO
De início, em um gesto servil, os camponeses convidam para ser presidente de honra da Liga o senhor de terras, o latifundiário do Engenho da Galiléia, Oscar Arruda Beltrão, que aceita e se faz presente quando a Liga é fundada, até então chamada de “Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco”. Mas a simples reivindicação de algo além do que simplesmente a ajuda funerária, como conseguir algumas sementes e instrumentos melhores de trabalho, já mostrava timidamente que o movimento tendia adquirir um caráter mais social e combativo – para a situação da organização do movimento camponês no nordeste à época – e isso fez com que outros latifundiários locais avisassem ao senhor de terras que aquilo que ele havia aceitado era uma “artimanha dos comunistas”.
Logo o latifundiário se viu assustado, com medo de que estivesse permitindo uma infiltração comunista em suas terras. O que queriam aqueles homens? Roubar suas terras? Destruir a sociedade? Implantar o socialismo? Parar de pagar o cambão, o foro? Destruir a casa grande e socializar o engenho? Absurdo! Não poderia permitir aceitar tamanha ameaça, mandou fechar a Liga… a partir desse momento a coisa muda.
E A RESISTÊNCIA VEIO…
Os camponeses não aceitaram aquela atitude, resolveram resistir ao fechamento! A partir desse momento a “Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco” se tornará um movimento que lutará não só pelos mortos, como pelos vivos; como Josué de Castro colocara: foi tratando dos problemas da morte que os camponeses do Engenho da Galiléia abriram seus olhos para a vida.
O latifundiário ameaçou expulsá-los, chamar a polícia, chamar seus capangas e coisas do gênero; a cada ameaça mais os camponeses ficaram bravos e animados para o dia em que iriam botar para correr aqueles parasitas de suas terras, onde viviam e produziam anos a fio, e então novamente decidiram que iriam resistir.
É aqui que entra um importante personagem dessa história: o advogado Francisco Julião.
UM ADVOGADO EM DEFESA DOS CAMPONESES POBRES DO NORDESTE
Francisco Julião Arruda de Paula nasceu em 16 de Fevereiro de 1915 no Engenho Boa Esperança, estado de Pernambuco. Falar de Julião é falar dos camponeses pobres e, principalmente, das Ligas Camponesas, todavia ele mesmo provém de uma família dona de engenhos.
Julião, de uma forma ou de outra, traiu sua classe de origem e essa foi a melhor decisão que já tomou. Estudou em bons colégios do Recife e, quando as coisas não iam bem nos Engenhos da família, começou a lecionar e se matriculou na faculdade de Direito, formando-se em dezembro de 1939.
Fato interessante é que – apesar de não ser ativo na vida política durante seu tempo de faculdade, mas muito influenciado pela oposição ao Estado Novo – Julião passou um dia detido no DOPS pouco tempo depois da formatura.
Desde o início de sua carreira, quando montou um escritório de advocacia em 1940, Julião buscou defender os camponeses pobres do nordeste. Em um processo relativamente rápido, Julião foi de um simples advogado dedicado a defender os camponeses para um agitador camponês de grande capacidade política e que incentivava os camponeses a tomarem todas as terras do latifúndio.
Defendendo por anos a causa dos posseiros da zona da mata pernambucana, Julião se tornou deputado e prestava ajuda principalmente a aqueles que não tinham dinheiro para pagar os impostos feudais exigidos nos latifúndios nordestinos.
Ganhando respeito das massas, principalmente após defender diversos trabalhadores que viveram por mais de 40 anos em terras que haviam sido recém compradas pela usina Santa Terezinha, que ameaçava expulsá-los, Julião foi procurado pelas famílias camponesas de Engenho da Galiléia. Julião, nessa época, já tinha percebido que a disputa jurídica, por si só, não estava resolvendo nada, pois sempre o camponês acabava perdendo as questões.
Nesses grandes acontecimentos históricos que estavam no tempo certo de acontecer, Francisco Julião conhece a situação do engenho e decide defender o que era a primeira Liga Camponesa.
EXPANDEM-SE AS LIGAS!
Com suas intervenções na Tribuna denunciando os crimes hediondos do latifúndio, não só em Engenho da Galiléia, como em todo o nordeste do Brasil, principalmente Pernambuco, Julião se torna um agitador social. Com a crescente atuação das Ligas no campo, passam a existir cada vez mais núcleos por toda a zona da mata pernambucana e logo ultrapassa os limites do estado, se espalhando por toda aquela região do Brasil (do Maranhão até Sergipe). Todos os camponeses agora tinham com o que se defender! E isso obviamente não foi bem visto pelos círculos dominantes nordestinos…
“Falava-se delas (as Ligas) como se fosse o próprio apocalipse e de Julião como se fosse o próprio anticristo. Foi neste momento que os Estados Unidos da América redescobriram o Nordeste”.
A perseguição sempre existira, mas a dimensão de sua ampliação foi tal que era como se naquele momento o Nordeste estivesse a beira de uma revolução comunista, que dali para o outro dia aqueles camponeses finalizariam o trabalho que a tal “intentona” não havia feito em 1935, quando entregou Natal.
O jornal New York Times nos artigos publicados por Tad Szulc em 31 de Outubro e 1 de Novembro de 1960 estampava em suas páginas: “Os marxistas estão organizando os camponeses no Brasil!” e, para completar, grafava: “O primeiro-ministro de Cuba, Fidel Castro, e o Presidente do Partido Comunista da China, Mao Tsetung, estão sendo apontados como heróis a serem seguidos pelos camponeses nordestinos, trabalhadores e estudantes”. Nessa sanha anticomunista do jornalista Tad Szulc sobrou até para a capital de Pernambuco, o Recife, apontado por ele como “o mais forte centro comunista do Brasil”.
Quanto mais os reacionários batiam, mais a Liga crescia; havia um espírito de revolta muito grande ali como em todo o Brasil. Com a chegada dos anos 60 e as ameaças de golpe militar já muito claras, as Ligas Camponesas ainda eram uma preocupação muito grande para as classes dominantes, várias lideranças das Ligas ao longo daquele tempo foram sendo assassinadas por jagunços e policiais amparados pelo estado, e nesse contexto culminou-se o golpe militar.
O GOLPE DE 1964 E A REPRESSÃO ÀS LIGAS
Assim como ocorreu em Trombas e Formoso (ver A luta de Trombas e Formoso e a sua similaridade com o Brasil atual) após o golpe militar a perseguição foi muito grande, como se pode constatar parcialmente no filme Cabra marcado pra morrer: os dirigentes e os apoiadores perseguidos, Julião dentre eles. Sendo reconhecido pela polícia após dias disfarçado, Julião é preso; depois de solto ainda passa um ano buscando exílio, até que se instala no México, mais especificamente em Cuernavaca onde faleceu na década de 90.
O resto dos dirigentes camponeses não têm a mesma sorte do deputado e acabam tendo que fugir para não serem presos, trocando de identidade e indo para cidades escondidas no interior do nordeste. Dessa forma, as Ligas vão sendo desarticuladas e a repressão consegue por anos, e à custa de muito sangue, calar o movimento camponês combativo, especialmente no nordeste. A falta de uma vanguarda revolucionária e o atraso de algumas concepções decorrente da ausência dessa vanguarda, fez com que, ao culminar-se o golpe militar de 64 as Ligas não disparassem um tiro, dessa forma encerrou-se um importante capítulo do movimento camponês no Brasil. Como de praxe na ação do velho Estado, foi mais um capítulo encerrado à bala.