A Fortaleza literária de ”Assim foi temperado o aço”

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Publicamos abaixo alguns trechos, dentre os que consideramos mais representativos, do magistral romance soviético “Assim foi temperado o aço”, de Nikolai Ostrovski. E não o fazemos por mera “curiosidade”.

Os trechos que aqui transcrevemos, quais sejam, referentes à fase da guerra civil revolucionária que se seguiu à vitória da Revolução de Outubro e que possibilitou a sua extensão a todo o território que viria a conformar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o relato sobre a fronteira que separava a Rússia soviética da Polônia aristocrática (que ilustra de forma belíssima a diferença entre os “dois mundos”), a luta de duas linhas no Partido bolchevique, exemplificada no romance através da luta contra os trotskistas, e por fim a imensa comoção e fortalecimento da unidade entre o povo soviético e seu Estado proletário, em seguida à morte de Lênin, são breve ilustração dessa obra que é verdadeiro testemunho histórico. Esperamos que sirvam como incentivo para que os jovens procurem ler esta obra, e tantas outras, integralmente.

Não resta a menor dúvida de que uma das tarefas mais importantes dos revolucionários nos dias de hoje, parte integrante da tenaz e encarniçada luta entre revolução e contra-revolução, é a difusão de toda a grandiosa construção socialista – realizada em curtíssimo período histórico- no século XX, empreendida nos países aonde triunfou a revolução proletária.

Como certeira e inequivocamente colocou o Presidente Gonzalo, quando nos princípios dos anos de 1990 a derrocada do social-imperialismo soviético era largamente utilizada pela reação e oportunistas de toda laia (revisionistas, trotskistas, anarquistas, as variadas matizes de social-democracia e todos os ditos “anti-stalinistas”) para dizer “falido o marxismo” e alcunhar de “totalitária” a ditadura do proletariado, tal derrocada somente confirmava a tese marxista sobre a questão do Estado e sobre a lei da contradição que rege na natureza, na sociedade e no pensamento humano e que implica portanto que no sistema socialista seguem existindo classes e luta de classes e que a ruína da URSS revisionista, ao largo de significar qualquer “crise no socialismo”, era exatamente manifestação da crise geral do capitalismo a nível mundial. E, de forma brilhante, colocava a necessidade imperativa de “ressaltar e difundir as grandes conquistas do socialismo e sua grandiosa construção: nunca, em nenhuma época da história, modo de produção algum tem feito tanto, em tão pouco tempo e para tão grandes, extensas e profundas massas exploradas, como o socialismo! A história contemporânea e os povos do mundo são incontroversas testemunhas”. (1)

E, claro, essa grandiosa construção histórica, remexendo toda a luta de classes no mundo desde os seus fundamentos, liberou também e gerou sua correspondência no domínio da literatura e na arte, desenvolvendo a concepção proletária das mesmas: o realismo socialista.

A obra “Assim foi temperado o aço”, escrita por Nikolai Ostrovski (1904-1936) entre 1930-1931 e publicada originalmente pela revista “Molodaya Gvardia” (Jovem Guarda) em 1932 é, sem dúvida, uma das mais representativas obras do realismo socialista e merece destaque entre as grandes e imperecíveis obras literárias já produzidas pela Humanidade. Trata-se, para as jovens gerações de revolucionários, de leitura absolutamente necessária.

O contexto histórico:

O realismo socialista, segundo definição de Jdanov, corresponde, do ponto de vista de sua criação, a “uma forma socialista num conteúdo nacional”. (2) Diferentemente da decadente e pedante produção artística burguesa que, sendo parte da concepção de mundo da burguesia e interessada na manutenção do status quo, busca por todas as vias a fuga à realidade, a distorção mais vulgar e embrutecedora da vida, o culto ao ócio e à decomposição da classe dominante, a concepção proletária da literatura e da arte, ao contrário, alimenta-se exatamente da vida e da luta das massas de milhões e bilhões de trabalhadores oprimidos, os construtores autênticos de toda as riquezas, a classe operária e o campesinato, principalmente.

Se a arte burguesa teme a realidade, a verdade, baseia-se no niilismo, no misticismo e na pornografia, é porque, no campo artístico assim como no campo científico a burguesia é inimiga irreconciliável da verdade, uma vez que é classe reacionária condenado ao desaparecimento. A literatura e arte revolucionárias proletárias, ao contrário, se alimentam da verdade, da vida das massas, de seu heroísmo cotidiano na luta de classes e na luta pela sobrevivência, essa espada que paira sobre a cabeça do povo sob o capitalismo, aonde o espectro do desemprego e da fome está sempre à espreita. A literatura e a arte revolucionárias proletárias alimentam-se da verdade, enfim, porque o futuro pertence à classe operária e demais classes oprimidas, e é o comunismo inarredável meta histórica, para onde marcha a Humanidade inelutavelmente.

“Assim foi temperado o aço” começou a ser escrito no final do ano de 1930. Momento de aguda crise do capitalismo a nível mundial (craque de 1929) momento em que o mundo capitalista ardia em crise e começava a soar os tambores da guerra. Na Alemanha, rondava a ameaça da besta nazista, que se confirmaria logo depois. Enquanto isso, em um sexto do globo terrestre, nos territórios das Repúblicas Socialistas Soviéticas, marchava a passos largos a edificação de um mundo novo. Completara-se definitivamente então a passagem do período de reconstrução econômica da NEP (Nova Política Econômica) ao período da edificação sobre novas bases da economia socialista propriamente dita, com a aplicação dos primeiros Planos Qüinqüenais e a coletivização no campo, liquidando com a classe dos kulaks (camponeses ricos). Sobre as ruínas da antiga sociedade nascia, edificada pelos braços vigorosos de milhões de homens e mulheres, operários, camponeses, a juventude em geral, uma nova sociedade, uma nova economia e uma nova cultura. Nascia mesmo um novo mundo, nascia também um novo Homem.

Tal movimento gigantesco e violento, que sacudira não só à União Soviética mas todo o mundo, como ocorreu sempre ao longo da história, não transcorreu “pacificamente”. Ocorreu em meio a grandes tormentas, porque é por meio delas, como diria o Presidente Mao, que avança a sociedade humana.

O cerco imperialista era tremendo. Após o término da Guerra Civil (1918-1921), aonde 15 países invadiram a jovem república proletária intentando mata-la ainda no nascedouro, vencida pelo Poder Soviético, jamais a Pátria do socialismo deixou de ser vítima de todo tipo de restrição e sufocamento econômico, diplomático e militar. A ameaça de uma intervenção estrangeira nunca deixou de estar presente. E, principalmente, dentro da União Soviética e do Partido Comunista (bolchevique) da União Soviética mesmo, se levantavam furiosamente todas as forças moribundas da velha sociedade, utilizando-se para isso de todas as “capas” e justificativas possíveis no intento de retornar à velha sociedade. A situação extremamente complexa em todo o mundo, e aguçada na Rússia com a coletivização socialista da agricultura, expressaram-se em uma aguda luta de duas linhas no seio do Partido Comunista, aonde, sob a liderança do camarada Stalin, a linha proletária logrou naquele momento prevalecer.

Lenin e Stalin.

Toda a gritaria derrotista das diversas correntes burguesas e pequeno-burguesas, apregoando a “degenerescência” e “desvirtuação” do Partido bolchevique e da ditadura do proletariado, da qual o trotskismo é um rebotalho, foi devida e fragorosamente derrotada pela marcha histórica. As duas teses centrais em torno das quais erigia Trotski suas “concepções”, quais sejam, a negação da possibilidade da aliança operário-camponesa e a negação da possibilidade de se edificar o socialismo em um só país, teses profundamente hostis ao desenvolvido em teoria e prática pelo próprio camarada Lênin em primeiro lugar, foram aplastadas. A esse antigo representante do menchevismo restou tomar o mesmo caminho trilhado por seus antigos companheiros Martov & cia, ou seja, o da contra-revolução armada à soldo dos países imperialistas.

É esse, em linhas bem gerais, o cenário da obra de Nikolai Ostrovski que, como se depreende pelo próprio romance, não assistiu tais acontecimentos do alto de suas janelas, ou enfurnado em bibliotecas, mas deles participou ativamente.

O autor e a obra:

Pouco se conhece, no Brasil, a respeito de Nikolai Ostrovski. E se sabe menos ainda que a sua obra mais importante –e única- é, sob vários aspectos, um retrato exato da sua própria vida.

Nikolai Ostrovski nasceu em 24 de setembro de 1904, na aldeia ucraniana de Vilyia, filho de uma família proletária. Desde muito cedo gostava de ler e sempre esteve entre os melhores alunos da escola. Em 1915 muda-se com a família para a cidade de Shepetovka Nikolay, perto da fronteira com a Polônia, e gradua-se na Escola Básica Integrada do Trabalho. Torna-se operário, trabalhando como foguista.

Alguns biógrafos afirmam ter Ostrovski ingressado no Exército Vermelho em 1919, participando ativamente da guerra civil contra os exércitos brancos contra-revolucionários. Segundo esta versão, teria ficado gravemente ferido nas costas no outono de 1920, e por isso foi desmobilizado. Esse fato, entretanto, nunca foi mencionado por Ostrovski. Não obstante, foi desde o princípio grande entusiasta da Revolução de Outubro e tomou parte de inúmeras atividades clandestinas em sua terra natal.

Por viver próximo à fronteira com a Polônia, Ostrovski vivenciou a encarniçada luta entre o Exército Vermelho e os exércitos alemão e polonês, bem como os diversos grupos de guardas brancos e seus pogroms (chacinas de judeus) criminosos. Vencida a guerra civil, integra-se à construção socialista e participa como mecânico da construção da grande ferrovia destinada ao abastecimento de Kiev. No local da construção Ostrovski, de saúde muito frágil, permaneceu sempre exposto ao frio e acabou contraindo tifo. Ainda assim permaneceu firme no trabalho e somente foi levado para casa quando pulou na água gelada para tentar salvar madeira que estava afundando, tendo quase se afogado.

Logo Ostrovsky foi diagnosticado com poliartrite, ou seja, foi condenado a permanecer imóvel durante o resto de sua vida. Enquanto pôde mover-se, entretanto, desempenhou febril atividade revolucionária e se tornou secretário da União da Juventude Comunista da Ucrânia. Em 1924 ingressa no Partido Comunista.

Sua saúde debilita-se diariamente e os tratamentos tentados não surtem efeito. Aos 23 anos já não consegue andar e sofre de dores crônicas. Dedica-se então ao estudo, e escreve em uma carta: “Eu perdi tudo fisicamente, mas a energia da juventude e o desejo de ser útil ainda permanecem”. Pouco depois, em decorrência da doença, perde também a visão.

Nesse momento difícil, seus amigos e camaradas o estimulam a escrever um livro. Começa então a rascunhar a história de um jovem que, como ele, decide abraçar e defender o Poder Soviético. Começa a nascer Pável Kortcháguin que, como vemos, em muito se assemelha ao seu criador.

O livro, iniciado no final de 1930, teve sua primeira parte concluída em Moscou, em 1931. No texto original, foram encontrados 19 manuscritos de pessoas diferentes, uma vez que o autor ditava o texto. A primeira parte enviada à revista “Jovem Guarda” foi recusada pelos editores por acharem, vejam só, os personagens principais totalmente “irrealistas”! Entretanto, os responsáveis da propaganda soviética interviram e em abril de 1932 a revista iniciou a publicação do romance. Em sua vida, Ostrovski viu 41 edições soviéticas de seu romance.

O conteúdo do romance, e o contexto em que foi escrito, tornaram o autor muito popular na União Soviética e em todo o mundo. Pouco tempo após seu aparecimento o livro já ganhava edições no Japão, na República Checa e nos Estados Unidos. Em 1935 Nikolai Ostrovski é condecorado com a Ordem de Lênin, o maior mérito na União Soviética. O governo soviético disponibilizou-lhe todos os recursos para que pudesse continuar a viver e a produzir e o autor recebeu uma casa em 1936, aonde começou a trabalhar em seu segundo romance. Infelizmente, entretanto, uma semana após ter concluído o primeiro volume, em 22 de dezembro de 1936, seu coração deixou de bater.

Foi enterrado em Moscou e seu nome batizou inúmeras ruas e praças por todo o território da URSS. Seu romance mereceu três edições diferentes no cinema soviético. (3)

Notas:
(1) Partido Comunista do Peru, II Pleno do Comitê Central -fevereiro de 1991.
(2) Jdanov, citado por Jorge Amado em “O Mundo da Paz”.
(3) Todas as informações biográficas foram retiradas do sítio Those Russians.

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“Assim foi temperado o aço”

(Trechos)

p { margin-bottom: 0.25cm; direction: ltr; line-height: 115%; text-align: left; orphans: 2; widows: 2; background: transparent }a:link { color: #0000ff; text-decoration: underline } Texto original de Nikolai Ostrovski, Moscou, 1932. Está  de acordo com a tradução de Maria Delamare, para a coleção “Romances do Povo”, editorial Vitória –1954. Direção da Coleção: Jorge Amado. A guerra civil: p.197 A 5 de julho de 1920, depois de vários choques rápidos e encarniçados, o 1º Exército de Cavalaria, comandado por Budiónni, rompeu a frente polonesa no setor de enlace dos exércitos inimigos 3º e 4º, derrotou a brigada de cavalaria do general Savitfki, que tentava cortar-lhe a passagem, e avançou em direção a Rújin. Com pressa febril, o comando polonês organizou um grupo de choque, que tinha por missão fechar a brecha. Cinco tanques, que acabavam de ser descarregados das plataformas na estação de Pogrebistche, dirigindo-se a toda velocidade ao lugar do combate. Mas o exército de cavalaria, fazendo um rodeio, deixou atrás de si Zarudnítsi, onde se preparava o golpe, e apareceu na retaguarda dos exércitos poloneses. Atrás do exército de Budiónni lançou-se a divisão de cavalaria do general Kornitski. Essa unidade recebera ordens para atacar a retaguarda do 1º exército, que, segundo opinião do comando inimigo, devia dirigir-se a Kazátin, ponto de enorme importância estratégica na retaguarda polonesa. Mas isso não aliviou a situação dos guardas brancos poloneses. Embora no dia seguinte tapassem a brecha aberta na frente, e esta se fechasse atrás do exército de cavalaria, em sua retaguarda se encontrava um poderoso contingente de forças montadas que, depois de destruir as bases da retaguarda inimiga, devia bater-se sobre o agrupamento polonês de Kiev. As divisões de cavalaria destruíram em sua passagem as pequenas pontes da estrada de ferro e destruíram as linhas para privar os poloneses de caminhos de retirada. Ao saber pelos prisioneiros que em Jitómir se encontrava o Estado-Maior do exército –na realidade, ali se achava também o Estado-Maior da frente –o chefe do exército de cavalaria decidiu tomar Jitómir e Berdítchev, importantes entroncamentos ferroviários e centros administrativos. Ao amanhecer de 7 de julho, a 4º divisão de cavalaria já galopava velozmente para Jitómir. Num dos esquadrões, substituindo Kuliadko, tombado em combate, Kortcháguin marchava no flanco direito. Tinha sido aceito no esquadrão graças a um pedido coletivo dos combatentes que não desejavam ficar sem nenhum acordeonista tão notável. Sem frear seus fogosos animais, estenderam-se em leque junto à Jitómir; os sabres luziram ao sol, lançando faíscas prateadas. A terra gemeu, os cavalos relincharam, os combatentes se levantaram nos estribos. A terra fugiu debaixo dos cascos, rápida. E a grande cidade, com seus jardins, vinha pressurosa ao encontro da divisão. Passaram os primeiros quintais, irromperam no centro, e seu grito “adiante!”, terrível e horrendo como a morte, fez estremecer o ar. Os poloneses, atônitos e surpreendidos, quase não opuseram resistência. A guarnição local foi esmagada. Inclinado sobre o pescoço do cavalo, Kortcháguin voava. Ao seu lado, no corcel negro de pernas finas, galopava Toptalo. Ante os olhos de Pável, o braço cavaleiro de Budiónni ceifou com um sabraço implacável um legionário, sem dar-lhe tempo de levar o fuzil à cara. Os cascos ferrados tiniam ao bater nas pedras. E, de repente, no cruzamento, bem no meio da estrada, apareceu uma metralhadora e três figuras de uniforme azul e quepe quadrangular polonês inclinadas sobre ela. Uma quarta figura, com um galão dourado na gola da túnica, ao ver os que galopavam, apontou rápida a mão que empunhava a máuser. Nem Toptalo nem Pável puderam deter seus cavalos e lançaram-se diretamente às garras da morte, em direção à metralhadora. O oficial disparou contra Kortcháguin…Falhou…A bala passou sibilando como um pardal junto à face, e o tenente, derrubado pelo peito do cavalo, caiu de costas, batendo com a cabeça nas pedras. Naquele mesmo instante, a metralhadora rompeu em gargalhadas selvagens, apressadas, febris. E Toptalo, como que picado por dezenas de vespas, caiu por terra com o cavalo mouro. O cavalo de Pável encabritou-se e, relinchando assustado, levou de um salto seu cavaleiro, por cima dos corpos caídos, sobre os que estavam junto da metralhadora; e o sabre, descrevendo um arco fulgurante, cravou-se no quadrado azul do quepe. O aço elevou-se de novo no ar, disposto a cair sobre outra cabeça. Mas o fogoso animal saltou para um lado. Como uma furiosa torrente da montanha, o esquadrão afluiu ao cruzamento, e dezenas de sabres cortaram o ar. Os longos e estreitos corredores do cárcere encheram-se de gritos. Nas celas, abarrotadas de gente de rostos torturados e exaustos, reinava agitação. Combatia-se na cidade. Seria aquilo a liberdade, seria gente nossa que havia aparecido não se sabe de onde? Os disparos ressoavam já no pátio. Pelos corredores corria gente. E, de repente, a palavra querida e indescritivelmente emocionante: “Camaradas, saiam!” Pável correu para uma porta com janelinha, para a qual se dirigiam dezenas de olhos. Deu uma forte coronhada na fechadura. E outra…E outra… -Espera, vou lançar-lhe uma bomba –disse Mirónov, detendo Pável, e tirou do bolso uma granada. Tsigartchenko, o chefe da seção, arrancou-a de suas mãos. -Alto, estás louco! Perdeste a cabeça? Trarão já as chaves. Onde não pudermos quebrar as fechaduras, abriremos com elas. Já  traziam os guardas pelo corredor, empurrando-os com os revólveres. E o corredor encheu-se de gente esfarrapada e suja, dominada de doida alegria. Pável abriu de par em par a porta larga e entrou correndo na cela. -Camaradas, estais livres. Somos os homens de Budiónni, nossa divisão tomou a cidade. Uma mulher, com os olhos inundados de lágrimas, lançou-se para Pável e, abraçando-o como se fosse de sua família, estalou em soluços. Mais preciosa que os troféus, mais ainda do que a vitória, era para os combatentes a libertação dos cinco mil e setenta e um bolcheviques e dos dois mil trabalhadores políticos do Exército Vermelho, encerrados pelos guardas brancos poloneses naquelas masmorras de pedra, onde aguardavam o fuzilamento ou a forca. Para sete mil revolucionários, a noite tenebrosa transformou-se de repente no sol brilhante de um dia quente de junho. Um dos presos, de rosto amarelo como a casca de um limão, lançou-se radiante para Pável. Era Samuíl Lékher, compositor da tipografia de Chepetovka. Pável escutava atento o relato de Samuíl. Seu rosto entristeceu-se, tornando-se cinzento. Samuíl falava da sangrenta tragédia na cidade que o vira nascer, e suas palavras caiam no coração como gotas de metal fundido. -Prenderam-nos todos ao mesmo tempo, durante a noite, devido à traição de um canalha provocador. Estávamos, portanto, nas garras dos gendarmes. Eles nos espancaram terrivelmente, Pável. Entretanto, eu fui menos torturado que os demais porque, aos primeiros golpes, caí ao solo, como morto. Outros eram mais fortes, e sobre eles descarregaram toda a sua fúria. Era inútil tentar ocultar nossas atividades. A polícia sabia tudo melhor do que nós. conheciam cada um dos nossos passos. Como não iam saber, se entre nós havia um traidor? Faltam-me palavras para descrever os horrores daqueles dias. Tu, Pável, conhecias muitos deles: Valia Brusjak, Rosa Gritsman, a do distrito, quase menina ainda, em seus dezessete anos, magnífica moça de olhos confiantes; depois Sacha Bunchaft, recordas?., também compositor de nossa tipografia, aquele rapaz alegre que sempre desenhava caricaturas do patrão e, além destes, dois estudantes do ginásio, Novossielski e Tujits. Conhecias esses. Os restantes eram todos da sede do distrito e de um povoadozinho. Ao todo, foram detidas vinte e nove pessoas, entre elas seis mulheres. Todos foram torturados ferozmente. Violaram Valia e Rosa logo no primeiro dia. Os canalhas se divertiam segundo seus caprichos. Arrastaram-nas à cela quase mortas. Depois disso, Rosa começou a delirar, e dias depois perdeu por completo a razão. Não acreditavam em sua loucura, achavam que era simulada e a espancavam em cada interrogatório. Quando a fuzilaram, dava medo de vê-la. Seu rosto estava enegrecido pelos golpes, os olhos tinham uma expressão selvagem, de demência, parecia uma velha. Valia Brusjak manteve-se firme até o último instante. Morreram como verdadeiros combatentes. Não sei de onde tiraram forças, mas, será que é possível, Pável, falar de sua morte? Não, não se pode. Sua morte é mais terrível que as palavras…Brusjak estava complicada no assunto mais perigoso:era ela quem mantinha contato com os rádio-telegrafistas do Estado-Maior polonês e tinha sido enviada à comarca para estabelecer ligação; e, ao fazerem uma busca, encontraram com ela duas granadas e uma pistola. As granadas lhe foram dadas por aquele mesmo provocador. Estava tudo preparado para acusa-la de querer destruir o Estado-Maior. -Ah, Pável, não posso falar dos últimos dias, mas, já que me pedes, farei um esforço. O conselho de guerra condenou Valia e mais dois à  forca; os restantes ao fuzilamento. Os soldados poloneses, entre os quais fizemos agitação, tinham sido julgados dois dias antes. O jovem cabo rádio-telegrafista Sniegurko, que antes da guerra trabalhava como mecânico eletricista em Lodz, acusado de traição à pátria e de fazer propaganda comunista entre os soldados, foi condenado ao fuzilamento. O rapaz não solicitou indulto e foi fuzilado vinte e quatro horas depois do conselho de guerra. Durante o conselho, chamaram Valia como testemunha no processo contra Sniegurko. Valia contou-nos que o rapaz tinha confessado que realizava propaganda comunista, mas repeliu com firmeza a acusação de traição à pátria. “Minha pátria –disse- é a República Socialista Soviética Polonesa. Sim, sou membro do Partido Comunista Polonês, fizeram-me soldado à força. E eu abria os olhos dos soldados como eu, que foram arrastados à frente. Podem enforcar-me por isto, mas não traí nem trairei minha pátria. O que acontece é que nossas pátrias são diferentes. A vossa é a dos “panis”, e a minha a dos operários e camponeses. E nessa minha pátria que há de vir, disso estou absolutamente certo, ninguém me chamará de “traidor”. Depois da sentença, deixaram-nos todos juntos. Antes da execução, levaram-nos ao cárcere. À noite prepararam as forcas em frente da prisão, ao lado do hospital; junto ao bosque, um pouco mais distante, nas proximidades da estrada, onde fica a ladeira, escolheram o lugar do fuzilamento; ali mesmo cavaram a fossa comum para nós. A sentença tinha sido pregada pelas ruas, todos a conheciam e os poloneses decidiram acabar conosco em pleno dia, para que todos pudessem ver e se aterrorizar. Desde a manhã começaram a arrebanhar a população da cidade, obrigando-a a ir ao lugar onde se levantavam as forcas. Alguns iam por curiosidade, embora tivessem medo. Em torno da forca havia muita gente. Até onde alcançava a vista, não se via mais que cabeças humanas. Como sabes, o cárcere está rodeado por uma cerca de troncos; e como as forcas estavam tão próximas de nós, ouvíamos o rumor das vozes. Na rua de trás colocaram metralhadoras: trouxeram a gendarmaria a pé e a cavalo de todo o distrito. Um batalhão inteiro isolava com cordão os quintais e as ruas. Para os condenados à forca tinham preparado uma fossa especial, ali mesmo, junto ao cadafalso. Esperávamos o fim em silêncio, trocando poucas palavras. Na véspera, quando nos despedimos, tínhamos falado de tudo. Somente Rosa balbuciava coisas incoerentes num canto da cela, falando consigo mesma. Valia, ferida pela violação e pelas pancadas, não podia andar e passava quase todo o tempo deitada no chão. E as comunistas do povoadozinho –duas irmãs- despediam-se abraçadas e, sem se poderem conter, começaram a chorar. Stépanov, um jovem da região, forte como um lutador, que resistiu ao ser detido e feriu dois gendarmes, pedia insistentemente às irmãs: “As lágrimas não são necessárias, camaradas! Chorem aqui, para não chorarem lá! Não devemos alegrar esses cães sanguinários. De qualquer maneira não haverá piedade para nós; e já que temos que morrer, vamos morrer como se deve. Que nenhum de nós se arraste de joelhos. Camaradas, lembrem-se, temos que morrer bem!” E vieram buscar-nos. Na frente ia Chvarkóvski, chefe do serviço de contra-espionagem, um sádico, um cão raivoso que, quando não violava pessoalmente as mulheres, entregava-as aos gendarmes para que o fizessem, enquanto ele contemplava a cena. Do cárcere à forca, duas filas de gendarmes formavam um corredor que cruzava o caminho. E os “canários”, que chamávamos assim por causa de suas dragonas amarelas, empunhavam os sabres desembainhados. Fomos empurrados a coronhadas até o pátio do cárcere, formaram-nos a quatro e, depois de abrir a porta, jogaram-nos à rua. Fomos colocados em frente à forca, para que víssemos a morte dos camaradas, e depois chegou a nossa vez. A forca era alta, feita de grossas vigas. Nela havia três laços de corda grossa; o tablado com grades apoiava-se em um postezinho. Ondulava o mar humano com um sussurro apenas perceptível. Todos os olhos estavam cravados em nós. Reconhecemos os nossos. Num terraço um pouco mais distante estava reunida toda a nobreza polonesa, no meio da qual havia alguns oficiais, e nos olhavam com binóculos. Queriam ver como se enforcava os bolcheviques. A neve que pisávamos era mole, o bosque estava branco, as árvores pareciam cobertas de algodão; os flocos, revoluteando, caíam lentamente e se derretiam em nossos rostos ardentes, e até o tablado estava coberto pela neve. Todos nós estávamos quase nus, mas ninguém sentia frio, e Stépanov nem sequer se dava conta de que não levava nos pés senão as meias. Junto da forca encontrava-se o auditor de guerra e os altos chefes militares. Por fim, tiraram do cárcere, sob escolta, Valia e os dois camaradas que tinham sido condenados à forca. Os três marchavam de braços dados. Valia ia no centro;não tinha forças para andar e os camaradas a ajudavam, mas ela fazia esforços sobre-humanos para caminhar erguida, recordando as palavras de Stépanov: “Temos que morrer bem”. Ia sem abrigo, com uma blusa de jérsei. Chvarkovski não gostou que fossem de braços dados, e empurrou-os. Valia disse alguma coisa, e por causa disso um dos gendarmes a cavalo descarregou a nagaika com todas as suas forças e chicoteou-lhe o rosto. Na multidão uma mulher gritou terrivelmente. Debatendo-se entre alaridos espantosos, tentava romper a cadeia de gendarmes e chegar até  os condenados, mas agarraram-na e levaram-na dali. Certamente era a mãe de Valia. Quando se encontravam perto da forca, Valia começou a cantar. Nunca tinha ouvido uma voz semelhante: só quem vai para a morte pode cantar com tal paixão. Valia entoou a “Varchavianka”, seus camaradas a secundaram. Os gendarmes a cavalo os açoitavam com as nagaikas; batiam-lhes com uma fúria cega. Mas eles pareciam não sentir os golpes. Derrubaram-nos e arrastaram-nos até a forca, como se fossem sacos. Leram a sentença rapidamente e começaram a passar-lhes os laços. Então começamos a cantar: De pé,  ó vítimas da fome… Caíram sobre nós de todos os lados e só pude ver que um dos soldados derrubava com uma coronhada o palanquezinho que sustentava o tablado, e os três ficaram pendurados nas cordas… Junto do paredão, leram a sentença para dez de nós; nela, por mercê  do general, comutava-se nossa pena de morte em vinte anos de trabalhos forçados. Os dezesseis restantes foram fuzilados… Samuíl abriu com paixão a gola da camisa, como se o asfixiasse. -Durante três dias não retiraram os enforcados. Junto da forca permanecia uma patrulha noite e dia. Depois trouxeram novos presos para o cárcere. Ele nos disseram: “No quarto dia, desprendeu-se o camarada Tobóldin, o mais pesado, e então retiraram os demais e os enterraram ali mesmo”. Mas a forca continuava ali todo o tempo. E quando nos conduziram para cá, vimo-la. Lá estava, com seus laços, esperando novas vítimas… Samuíl calou-se, fixando seu olhar imóvel no horizonte. Pável não se deu conta que havia terminado o relato. Ante seus olhos surgiam nitidamente três corpos humanos, que balançavam em silêncio, tombadas de lado as cabeças espantosas. Na rua soou o brusco toque de “chamada”. O som obrigou Pável a voltar a si. Em voz baixa, apenas perceptível, disse: -Vamos embora, Samuíl! Pela rua, escoltado pela cavalaria, marchavam os prisioneiros poloneses. Junto à porta do cárcere encontrava-se o comissário do regimento, acabando de escrever uma ordem na caderneta de campanha. -Tome, camarada Antípov –disse, estendendo a ordem a um robusto chefe de esquadrão –prepare uma patrulha e envie todos os prisioneiros a Novograd-Volinski. Tratem dos feridos, ponham-nos em carretas e enviem-nos na mesma direção. Façam-nos descer a umas vinte verstas da cidade, e que se sumam. Não temos tempo a perder com eles. Cuidado para que não se cometa brutalidade alguma com nenhum dos prisioneiros. Ao montar, Pável voltou-se para Samuíl: -Ouviste? Eles enforcam os nossos, e depois temos de conduzi-los aonde estão os seus, sem brutalidade! Onde buscar forças para suportar isso? O chefe do regimento voltou a cabeça para ele e olhou-o fixamente. Pável ouviu as palavras firmes e secas que o chefe do regimento pronunciou como se falasse para si: -A crueldade com os prisioneiros desarmados será castigada com o fuzilamento. Nós não somos os brancos! E, ao se afastar da porta do cárcere, Pável recordou as últimas palavras da ordem do Comitê Militar Revolucionário, lida perante todo o regimento: “A pátria operária e camponesa ama seu Exército Vermelho. Orgulha-se dele. Exige que em sua bandeira não haja nem uma só mancha”. -Nem uma só mancha –sussurraram os lábios de Pável.   A fronteira que separa dois mundos: p. 347 Dois postes marcam a fronteira. Mudos e hostis, encarnando dois mundos, erguem-se um diante do outro. Um deles é aplainado e polido, pintado de preto e branco, como a guarita de uma sentinela. Em cima, com grandes pregos, está presa a ave de rapina monocéfala. De asas abertas, como se cravasse suas garras no poste de listras, a ave de rapina, com o bico encurvado e tenso, espreita malévola o escudo metálico que há diante dela. A uma distância de seis passos, há outro poste redondo de carvalho brilhante, profundamente fincado na terra. Sobre este destaca-se um escudo de ferro fundido, e nele, o martelo e a foice. Embora os dois postes estejam fincados na terra plana, entre os dois mundos existe um abismo. Ninguém pode atravessar esses seis passos, sob pena de arriscar a vida. Ali está a fronteira. Desde o Mar Negro até os confins do Norte, até o próprio Oceano Glacial, numa distância de milhares de quilômetros, estende-se a linha silenciosa daquelas sentinelas das Repúblicas Socialistas Soviéticas, com o grandioso emblema do trabalho em seus escudos. A Leste e a Oeste daquele poste com águia monocéfala começam, respectivamente, as terras da Ucrânia Soviética e as da Polônia dos “panis”. A pequena aldeias de Beresdov perde-se numa depressão. A dez quilômetros dela, diante da aldeia polonesa de Koriets, está a fronteira. Da aldeia de Slavuta até a de Anápol prolonga-se o setor do 10º batalhão de guardas-fronteiras. Os postes fronteiriços estendem-se através de campos nevados, passam pelo bosque, descem até os barrancos, destacam-se nas cristas dos outeiros e, ao chegar ao rio, observam da alta margem a planície nevada da terra estranha… Fazia frio. A neve estalava sob as botas de feltro. Do poste com o martelo e a foice destacou-se uma figura gigantesca, coberta de elmo, como os heróis legendários. Andando pesadamente, começou a percorrer seu setor. O corpulento soldado vermelho vestia capote cinzento, com distintivos verdes, e botas de feltro. Em cima do capote usava um enorme abrigo de pele de ovelha com uma gola larguíssima, e um capacete quente de pano cobria sua cabeça. Suas mãos estavam protegidas por manoplas de pele. O abrigo chegava-lhe até os calcanhares; com ele não sentia frio nem sequer durante as terríveis nevascas. Sobre seu ombro descansava o fuzil. O soldado vermelho, varrendo a neve com o abrigo, ia pela linha de vigilância, aspirando com satisfação a fumaça de seu cigarro. Na fronteira soviética, em campo aberto, as sentinelas se encontravam a um quilômetro uma da outra, a fim de poderem ver-se mutuamente a olho nu. Na fronteira polonesa havia dois homens para cada quilômetro. Em direção contrária ao soldado vermelho, por seu caminho na linha de vigilância, marchava um soldado polonês. Usava sapatos grosseiros de soldado, túnicas e calças de cor verde-cinzenta e, em cima destes, um capote negro com duas fileiras de botões reluzentes. Cobria sua cabeça com um quepe de quatro bicos. A águia monocéfala brilhava em muitas partes de seu uniforme: no quepe, nas ombreiras e na gola do capote, mas isto não fazia com que sentisse mais calor. O frio cruel penetrara-lhe até os ossos. Esfregava as orelhas insensíveis, batia com os saltos quando andava, e suas mãos, enfiadas em luvas finas, estavam geladas. Não podia deter-se nem um minuto: o frio paralisava suas articulações num instante, e o soldado movia-se continuamente, às vezes a trote. As sentinelas se nivelaram, e o polonês deu a volta e começou a andar paralelamente ao soldado vermelho. Na fronteira não se pode conversar, mas quando em redor está tudo deserto e os seres humanos mais próximos se encontram a um quilômetro de distância, quem sabe se essas duas sentinelas que marcham paralelamente vão em silêncio ou infringem as leis internacionais? O polonês queria fumar, mas tinha esquecido os fósforos no quartel, e o ventinho, como se pretendesse fazer-lhe raiva, trazia do lado soviético o aroma tentador do tabaco. O polonês deixou de esfregar as orelhas e olhou para trás; às vezes, numa patrulha montada, com o suboficial na frente, e certas ocasiões até mesmo o tenente, percorria a fronteira para inspecionar os postos, e surgia inesperadamente detrás de algum outeiro. Mas ao redor tudo estava deserto. O lençol de neve ofuscante brilhava ao sol. No céu não havia uma só mancha branca. -Camarada, dá-me fósforos –disse o polonês, infringindo em primeiro lugar a lei sagrada e, pondo nas costas seu fuzil francês de baioneta larga, sacou do bolso do capote, com seus dedos enregelados, um maço de cigarros baratos. O soldado vermelho tinha ouvido o pedido do polonês, mas o regulamento do serviço de guardas-fronteiras proibia ao combatente entabular conversa com qualquer estrangeiro, e além disso não tinha compreendido bem o que dissera o soldado. E continuou seu caminho, pisando forte a neve crepitante com seus pés enfiados nas cálidas botas de feltro. -Camarada bolchevique, dá-me fogo, joga-me a caixa de fósforos –disse o polonês, desta vez em russo. O soldado vermelho espiou seu vizinho. “Vê-se que o frio penetrou no ‘pan’ até o fígado. Embora seja um soldadinho burguês, sua vida é cachorra. Jogaram-no neste frio, só com o capotinho, salta como uma lebre, e sem poder fumar está sofrendo o diabo”. E o soldado vermelho, sem se voltar, jogou a caixa de fósforos. O polonês pegou-a no ar e, riscando muitos fósforos, acendeu por fim o cigarro. A caixa voltou a passar da mesma forma a fronteira, e então, o soldado vermelho infringiu a lei sem querer. -Fique com ela, eu tenho outra. Mas do outro lado da fronteira ouviu-se dizer: -Obrigado, por esta caixa de fósforos teria que passar um par de aninhos na cadeia. O soldado vermelho olhou a caixa. Nela havia um avião. Em vez da hélice, via-se um punho poderoso e a inscrição: “Ultimatum”. “Sim, de fato, para eles não são nada apropriadas”. O soldado polonês continuou andando paralelamente ao combatente soviético. Aborrecia-se sozinho no campo deserto… * Naquele ano, as festas de outubro foram celebradas na fronteira com entusiasmo extraordinário. Kortcháguin foi eleito presidente da comissão organizadora das festas nas aldeias fronteiriças. Depois do comício realizado em Poddúbtsi, uma massa de cinco mil camponeses e camponesas de três aldeias regionais, com as bandeiras vermelhas desfraldadas ao vento e formando uma coluna que se estendia por uma distância de meio quilômetro, com a banda de música e o batalhão de instrução pré-militar à frente, saiu da aldeia em direção à fronteira. Mantendo uma ordem severíssima e perfeitamente organizada, a coluna começou seu desfile pela terra soviética, ao longo dos postes, dirigindo-se às aldeias divididas pelos limites de ambos os países. Os poloneses nunca tinham visto espetáculo semelhante na fronteira. Diante da coluna iam, a cavalo, o chefe do batalhão Gavrílov e Kortcháguin, e atrás, o troar dos instrumentos, o sussurro das bandeiras, e canções, canções!…A juventude camponesa vestia roupa de festa; reinava a alegria; as moças aldeãs riam com riso juvenil semelhante ao tinir de milhares de campainhas de prata; os adultos marchavam com rosto sério, e, com expressão solene, os anciãos. Longe, até onde a vista alcançava, caminhava aquele rio humano cuja margem era a fronteira, e nem um só pé saiu da terra soviética nem pisou um centímetro da terra que se estendia além da linha proibida. Kortcháguin deixou a torrente humana passar adiante. A canção dos konsomóis: Da taigá até os mares britânicos O Exército Vermelho é o mais forte de todos! Foi alternada com o coro das moças: Ai, nos outeiros colhem as ceifadoras… Com sorriso alegre as sentinelas soviéticas saudavam a coluna, e, com embaraço e perturbação, os poloneses a olhavam. O desfile pela fronteira, mesmo com a advertência antecipada ao comando polonês, provocou alarma do outro lado. As patrulhas da gendarmaria iam e vinham apressadamente, foram reforçados cinco vezes mais os postos da fronteira e, para o que pudesse acontecer, nos barrancos havia reservas de prontidão. Mas a coluna marchava por sua terra, barulhenta e alegre, enchendo o ar com o som das canções. Sobre o outeiro encontrava-se uma sentinela polonesa. A coluna marchava a passo moderado. Ressoaram os primeiros acordes da marcha. O polonês baixou o fuzil do ombro e apresentou armas. Kortcháguin ouviu distintamente: -Viva a comuna! Os olhos do soldado diziam que era ele quem tinha pronunciado aquelas palavras. Pável olhava-o fixamente. Era um amigo! Debaixo do capote do soldado batia um coração irmanado aos da coluna, e Kortcháguin respondeu em voz baixa, em polonês: -Salve, camarada! A sentinela ficou atrás. Deixava a coluna passar, mantendo o fuzil na mesma posição. Pável virou várias vezes a cabeça para olhar aquela figura negra e pequena. Chegaram onde se encontrava outro polonês de bigodes encanecidos. Sob o canto brilhante da pala do quepe, espreitavam dois olhos imóveis e desbotados. Kortcháguin ainda sob a influência do que acabara de escutar, foi o primeiro a dizer em polonês, como para si mesmo: -Salve, camarada. E não recebeu resposta. Gavrílov sorriu. Tinha ouvido tudo. -Tu queres muito –disse. –Além dos soldados de infantaria, há aqui gendarmes a pé. Não viste que tem um galão no punho da manga? É um gendarme. A cabeça da coluna descia do cerro para a aldeia, dividida em duas pela fronteira. A metade soviética preparava para seus convidados uma recepção triunfal. Junto da ponte da fronteira, na margem do pequeno rio, reunira-se toda a população soviética. As moças e os rapazes tinham formado dos dois lados da estrada. Na metade polonesa, os telhados das isbás e dos palheiros estavam abarrotados de gente, que olhava atentamente o que ocorria na margem oposta do rio. Nos umbrais das casas e junto das cercas havia uma multidão de camponeses. Quando a coluna entrou naquele corredor humano, a orquestra atacou “A Internacional”. Na tribuna, construída pelo povo da aldeia e adornada com ramos verdes, pronunciavam emocionados discursos os jovens imberbes e os velhos de cabeça nevada. Também Kortcháguin falou em seu idioma natal, em ucraniano. Suas palavras cruzavam o rio e se ouviam na margem oposta. Lá resolveram não consentir que este discurso inflamasse certos corações. Pela aldeia começou a correr a patrulha de gendarmes montados, obrigando o povo a entrar em casa a chicotadas. Estalaram disparos dirigidos contra os telhados. As ruas ficaram desertas. Os jovens desapareceram dos telhados, desalojados dali pelas balas, e da margem soviética olhavam tudo isto e franziam o cenho. Ajudado pelos rapazes, galgou a tribuna um velho pastor e, agitado por uma onda de indignação, disse emocionado: -Bem! Olhem, meus filhos! Também houve tempo em que nos batiam assim, mas agora ninguém na aldeia vê o governo descarregar o chicote sobre os camponeses. Acabaram os “panis” e acabaram as chicotadas sobre nossas costas. Filhos meus, mantenham firmemente este Poder. Sou velho, não sei falar. Quisera dizer muito da vida que arrastávamos sob o tzar, como o boi arrasta a carroça. Além disso, aqueles me causam tanta pena!…-E apontando com sua mão ossuda para a outra margem, desatou a chorar como só sabem fazer os meninos e os velhos.   A luta contra os trotskistas: P. 389 Acompanhado do intenso zumbido de seu motor elétrico, o bonde subia penosamente a rua Fundukléevskaia. Deteve-se junto da Ópera. Desceu dele um grupo de jovens, e o bonde continuou sua marcha. Pankrátov animava os demais. -Mais depressa, rapazes. Não estão vendo que, apesar de tudo, chegaremos tarde? Okunev alcançou-o já na entrada do teatro. -Recordas, Guenka, que há três anos chegamos aqui da mesma maneira? Então Dubava voltou para nós, vindo da “oposição operária”. Foi uma boa tarde. E hoje vamos lutar de novo com Dubava. Pankrátov responde a Okunev já na sala, onde acabavam de entrar depois de haver mostrado suas credenciais ao grupo de controle que estava na porta. -Sim, com Mitíai repete-se outra vez a mesma história. Fizeram psss…, reclamando-lhes silêncio. Tiveram que ocupar os lugares mais próximos da entrada. A sessão vespertina da conferência já havia começado. Na tribuna via-se uma figura feminina. -Chegamos no momento. Senta-te e escuta o que vai dizer tua mulherzinha –sussurrou Pankrátov, dando uma cotovelada nas costelas de Okunev. -É  certo que gastamos muitas energias na discussão, mas em compensação a juventude que participou dela aprendeu muito. Assinalamos com grande satisfação que a derrota dos partidários de Trotski em nossa organização é evidente. Não podem queixar-se de que não se tenha deixado eles manifestarem suas opiniões, exporem por completo seus pontos de vista. Pelo contrário. Essa liberdade de ação que lhes demos trouxe como conseqüência, por sua vez, toda uma série de graves infrações da disciplina do Partido. Tália estava emocionada; uma mecha de cabelos caía sobre seu rosto e a embaraçava ao falar. Com um movimento brusco, jogou a cabeça para trás. -Ouvimos aqui muitos camaradas dos distritos e todos eles falaram dos métodos usados pelos trotskistas. Aqui na conferência, têm uma representação que não é pequena. Os distritos deram-lhes credenciais conscientemente, para que fossem ouvidos mais uma vez na conferência local do Partido. Não é culpa nossa se eles intervém pouco. Sua derrota completa nas células e nos distritos ensinou-lhes algo. Agora é difícil falar desta tribuna e repetir o que ontem mesmo nos diziam. Do ângulo direito das filas de cadeiras, uma voz brusca interrompeu Tália: -Ainda falaremos! Lagútina voltou-se. -Está  bem, Dubava, sai e fala, nós ouviremos –propôs Tália. Dubava deteve na jovem seu olhar confuso e seus lábios crisparam-se nervosamente. -Quando chegar o momento, falaremos! –gritou, e recordou a dura derrota sofrida no dia anterior em seu distrito, onde o conheciam. Um rumor de protestos percorreu a sala. Pankrátov não pôde conter-se: -Como, pensas em dividir outra vez o Partido? Dubava reconheceu a sua voz, mas, nem sequer se virou; limitou-se a morder o lábio até machuca-lo, e abaixou a cabeça. Tália continuou: -O próprio camarada Dubava pode servir de exemplo evidente de como os trotskistas infringem a disciplina do Partido. É um velho trabalhador da Juventude, muitos o conhecem, particularmente os do arsenal. Dubava é estudante da Universidade Comunista de Khárkov, mas todos nós sabemos que há três semanas se encontra aqui, com Chúmski. Que é que os trouxe aqui, quando estão em pleno período de estudo? Não há um só distrito na cidade onde não tenham falado. É verdade que Mikhailo, nos últimos dias, começou a aclarar a cabeça. Quem os enviou aqui? Além deles, temos numerosos trotskistas de diferentes organizações. Todos já trabalharam aqui e agora vieram para atiçar o fogo da luta interna no Partido. Será que a organização do Partido a que pertencem sabe onde se encontram? Naturalmente que não. A conferência esperava que os trotskistas interviessem reconhecendo seus erros. Tália procurava empurra-los para o caminho do arrependimento e falava como se, em vez de estar na tribuna, se encontrasse numa palestra entre camaradas. -Lembrem-se de que há três anos, neste mesmo teatro, Dubava voltou para nós com o antigo grupo da “oposição operária”. Recordem suas palavras: “Nunca deixaremos cair de nossas mãos a bandeira do Partido”, e ainda não passaram três anos e Dubava deixou-a cair. Eu afirmo que assim é. Pois suas palavras “ainda falaremos” dizem que ele e seus adeptos, os trotskistas, seguirão seu caminho. Das poltronas traseiras ouviu-se dizer: -Que fale Tufta do barômetro (*) é o meteorologista dele. Levantaram-se vozes agitadas: -Basta de zombarias! -Então respondam: cessam de lutar contra o Partido, ou não? -Digam quem escreveu a declaração contra o Partido!  A agitação ia aumentando; o presidente vibrou a campainha por muito tempo. As palavras de Tália perderam-se no ruído das vozes, mas a tormenta logo se acalmou e de novo ouviu-se Lagútina. -Recebemos cartas de nossos camaradas do interior; estão conosco, e isso nos anima. Permitem-me que leia um parágrafo de uma das cartas. É de Olga Iúrienieva; muitos de vocês a conhecem; agora é dirigente da seção da organização do Comitê Regional da Juventude. Tália tirou a carta de um pacote de documentos e, percorrendo-a com o olhar, leu: -“O trabalho prático está abandonado; há quatro dias que toda a direção está nos distritos. Os trotskistas abriram a luta com extraordinária força. Ontem ocorreu um caso que indignou toda a organização. Os oposicionistas, não obtendo maioria em nenhuma das células da cidade, decidiram dar combate com suas forças unidas na célula do Comissariado Militar da região, da qual fazem parte os comunistas do escritório do Plano do Estado e os trabalhadores da Instrução Pública. A célula conta com quarenta e duas pessoas, mas para lá foram todos os trotskistas. Nunca havíamos escutado discursos tão contrários ao Partido como os pronunciados nessa reunião. Um elemento do Comissariado Militar interveio e disse com todo o descaramento: “Se o aparelho do Partido não se entregar, nós o quebraremos pela força”. Os oposicionistas receberam com aplausos essa manifestação. Então Kortcháguin tomou a palavra e disse: “Como é que sendo membros do Partido, vocês podem aplaudir esse fascista?”. Não o deixaram continuar falando, faziam ruídos com as cadeiras, gritavam. Os membros da célula, indignados com esse comportamento próprio de malandros, exigiram que se escutasse Kortcháguin, mas, quando Pavél começou a falar, organizaram de novo a obstrução. Pável gritou-lhes: “Boa democracia a de vocês! Falarei de qualquer maneira!”. Então alguns o agarraram e procuraram tira-lo da tribuna. Foi uma selvageria. Pável repelia-os e continuava falando, mas tiraram-no do palco arrastado e, abrindo a porta lateral, jogaram-no na escada. Um canalha deu-lhe uma pancada que banhou seu rosto de sangue. Quase toda a célula retirou-se da reunião. Esse caso abriu os olhos de muitos…” Tália deixou a tribuna. Há  dois meses que Segal trabalhava como secretário de agitação e propaganda do Comitê Provincial do Partido. Agora se encontrava na presidência, ao lado de Tókariev, e escutava atentamente as intervenções dos delegados à conferência local do Partido. Até  o momento, falavam apenas os que ainda se encontravam na Juventude. “Como cresceram nestes anos!”, pensava Segal. -Os oposicionistas já estão passando por apertos –disse a Tókariev –e a artilharia pesada ainda não foi posta em ação: é a juventude que esmaga os trotskistas. Tufta subiu à tribuna. Na sala receberam-no com um murmúrio desaprovador e uma breve explosão de riso. Tufta voltou-se para a presidência a fim de manifestar seu protesto contra aquela acolhida, mas na sala já se havia feito silêncio. -Alguém aqui me chamou de meteorologista. Assim, camaradas da maioria, zombais de minhas concepções políticas! –disse de um só fôlego. Uma gargalhada unânime seguiu suas palavras. Tufta, indignado, voltou a cabeça para a presidência, apontando a sala. -Por mais que se riam, voltarei a dizer que a juventude é o barômetro. Lênin escreveu isso várias vezes. Na sala todos se calaram no mesmo instante. -Escreveu o que? –perguntou uma voz. Tufta animou-se. -Quando se preparava a insurreição de Outubro, Lênin dava a diretiva de reunir a juventude operária combativa, arma-la e lança-la com os marinheiros aos setores mais perigosos. Querem que leia isso? Tenho todas as citações escritas em fichas. E Tufta começou a rebuscar sua pasta. -Isso já sabemos! -E que escrevia Lênin sobre a unidade? -E que escreveu sobre a disciplina do Partido? -Onde é que Lênin opunha a juventude à velha guarda? Tufta perdeu o fio do discurso e passou a outro tema. -Lagútina leu aqui uma carta de Iúrienieva. Nós não podemos ser responsáveis por certas anormalidades na discussão. Tzvetáev, que estava sentado ao lado de Chúmski, sussurrou raivoso: -Manda um bobo buscar lã e sairá tosquiado. Chúmski respondeu, também com um fio de voz: -É, esse pateta vai afundar-nos definitivamente. A voz aguda e estridente de Tufta continuava perfurando os tímpanos: -Se vocês organizaram a fração da maioria, também nós temos o direito de organizar a fração da minoria. Na sala estalou a tormenta. Tufta ficou aturdido por uma saraivada de exclamações indignadas. -Que é isso? Outra vez bolcheviques e mencheviques? -O Partido Comunista não é um parlamento! -Eles se esforçam por todos, desde Miásnikov até Mártov! Tufta abriu os braços, como se fosse nadar, e começou a disparar palavras, descontrolado: -Sim, a liberdade de grupos é necessária. Do contrário, como é  que nós, que pensamos diferentemente, poderemos lutar por nossas concepções com uma maioria tão organizada e unida pela disciplina? O rumor na sala ia aumentando. Pankrátov levantou-se e gritou: -Deixem que ele se manifeste, é bom saber de tudo. Tufta deixa escapar o que os outros não dizem! Fez-se silêncio. Tufta compreendeu que havia falado mais do que devia. Realmente, não valia a pena fazer semelhantes declarações em tais momentos. Mudou de tema, e ao terminar sua intervenção lançou aos ouvintes uma torrente de palavras: -Naturalmente, podem expulsar-nos e afastar-nos. Isso já começou. Eu já  fui afastado do Comitê provincial do Komsomol. Não tem importância, logo veremos quem tem razão -. E abandonou o palco, descendo para a sala. Dubava recebeu uma nota de Tzvetáev, em que dizia: “Mitiái, intervém agora. É verdade que isso não mudará o rumo das coisas, nossa derrota aqui é evidente, mas é imprescindível retificar Tufta. É um idiota e um charlatão”. Dubava pediu a palavra, que lhe foi concedida imediatamente. Quando subiu ao palco, fez-se na sala um silêncio de expectativa. Esse silêncio, habitual antes dos discursos, fez Dubava sentir o frio do isolamento. Já não tinha o ardor com que havia falado nas células. Dia após dia ia-se apagando seu fogo, e agora, como uma fogueira borrifada com água, cobria-se de fumaça acre, a fumaça do seu orgulho mórbido afetado pela derrota e pela réplica severa dos velhos camaradas. A isto se devia acrescentar a obstinação em não querer reconhecer seu erro. Resolveu liquidar tudo, mesmo sabendo que isso o afastaria ainda mais da maioria. E com voz surda, mas clara, começou a falar: -Rogo que não me interrompam e que não me fustiguem com apartes. Quero expor completamente nossa posição, mesmo sabendo, de antemão, que é  inútil: vocês são maioria. Quando terminou, parecia que na sala tinha estourado uma granada. Desabou sobre Dubava um furacão de gritos. Como golpes de chicote no rosto, flagelaram Dmitri as exclamações coléricas: -É  uma vergonha! -Abaixo os fracionistas! -Basta! Basta de salpicar lama! Uma gargalhada irônica acompanhou Dmítri quando desceu do palco, e essa gargalhada partiu-lhe o coração. Se tivessem gritado indignadamente e com fúria, ficaria satisfeito. Mas zombavam dele como de um artista que, querendo dar uma nota alta, solta uma nota desafinada. -Chúmski tem a palavra –disse o presidente. Mikhailo levantou-se. -Renuncio a intervir. Das fileiras de trás retumbou a voz de Pankrátov: -Peço a palavra! Pelo timbre daquela voz, Dubava conheceu o estado de ânimo de Pankrátov. O carregador falava assim quando alguém o ofendia gravemente, e ao acompanhar com olhar sombrio a figura alta e um pouco encurvada de Ignat, que se dirigia rapidamente para a tribuna, Dubava sentiu uma inquietação angustiosa. Sabia o que Ignat ia dizer. Recordou seu encontro do dia anterior com os velhos amigos, em Solómenka, quando os rapazes, numa conversação cordial, tentavam faze-lo romper com a oposição. Estavam consigo Tzvetáev e Chúmski. Tinham-se reunido em casa de Tókariev. Lá se encontravam Ignat, Okunev, Tália, Volíntzev, Selienova, Staroviérov e Artiúkhin. Dubava manteve-se mudo e surdo quanto àquela tentativa de restabelecer a unidade. Quando a palestra esfriou, saiu com Tzvetáev, acentuando assim que não estava disposto a reconhecer a falsidade de seu ponto de vista. Chúmski tinha ficado. Agora renunciava a intervir. “Intelectual mole! Naturalmente ganharam-no com sua propaganda”, pensou Dubava colérico. Naquela luta violenta havia perdido todos os seus amigos. Na Escola Superior Comunista deu-se a ruptura de sua antiga amizade com Járki, que tinha intervido duramente na direção contra a declaração dos “quarenta e seis”. Mais tarde, quando as diferenças se aguçaram, deixou de falar com ele. Várias vezes tinha visto Járki em sua casa, no quarto de Ana. Há já um ano que Ana Borkhart era sua mulher. Tinham quartos independentes. Dubava considerava que suas relações tensas com Ana, que não compartilhava de seus pontos de vista, pioravam ainda mais, dia a dia, porque Járki tinha começado a visita-la com freqüência. Não sentia ciúmes, mas a amizade de Ana com Járki, com quem Dubava não falava, produzia-lhe irritação. Disse isso a Ana. Tiveram uma altercação e sua relação tornou-se ainda mais tensa. Viera à conferência sem dizer à sua mulher. Ignat interrompeu o curso rápido de seus pensamentos. O carregador começava seu discurso. -Camaradas! –disse Pánkratov, pronunciando firmemente esta palavra; subiu à tribuna e colocou-se junto das luzes. –Camaradas! Durante nove dias estivemos escutando as intervenções dos oposicionistas. Digo francamente que não intervieram como companheiros de idéia, como combatentes da revolução, como nossos amigos de classe e de luta! Suas intervenções foram profundamente hostis, irreconciliáveis, perversas e caluniosas! Sim camaradas, caluniosas! A nós bolcheviques, tentaram apresentar como partidários do regime de disciplina a pau no Partido, como gente que atraiçoa os interesses de sua classe e da revolução. Tentaram fazer passar como representantes do burocratismo no Partido os homens do seu melhor e mais comprovado destacamento, a gloriosa velha guarda bolchevique, aqueles que forjaram e educaram o Partido Comunista da Rússia, aqueles que o despotismo tzarista torturava nos cárceres, aqueles que, com o camarada Lênin à frente, lutaram implacavelmente contra o menchevismo mundial e contra Trotski. Quem, a não ser um inimigo, poderia dizer semelhantes palavras? Será que o Partido e o seu aparelho não são um todo único? Digam-me: que parece isso? Como chamariam os que incitassem os jovens soldados vermelhos contra os chefes, os comissários e o Estado-Maior, quando o destacamento estivesse rodeado de inimigos? Se hoje sou serralheiro, segundo a opinião dos trotskistas ainda posso considerar-me “decente”, mas se amanhã chego a secretário de um comitê já sou um “burocrata” e “um do aparelho”! Não é raro, camaradas, que entre os oposicionistas que lutam pela democracia, contra o burocratismo, haja, por exemplo, pessoas como Tufta, há pouco destituído de seu cargo como burocrata; como Tzvetáev, bem conhecido dos de Solomenka por sua “democracia”, ou como Afanássiev, que o Comitê provincial destituiu dos postos de direção três vezes por sua autocracia e despotismo no distrito de Podol? O fato é que na luta contra o Partido reuniram-se todos aqueles a quem o Partido castigou. Que os velhos bolcheviques falem do “bolchevismo” de Trotski. É necessário que a juventude conheça a história da luta de Trotski contra os bolcheviques, sua passagem contínua de um campo para o outro. A luta contra a oposição aglutinou nossas fileiras, fortaleceu ideologicamente a juventude. O Partido bolchevique e a Juventude Comunista forjaram-se na luta contra as tendências pequeno-burguesas. Os covardes histéricos da oposição nos auguram uma catástrofe econômica e política completa. Nosso futuro demonstrará o valor dessa profecia. Exigem que enviemos nossos velhos lutadores, como por exemplo Tókariev, para trabalhar numa máquina, e que coloquemos em seu lugar um barômetro estragado como Dubava, que quer fazer passar por heroísmo a luta contra o Partido. Não, camaradas, não o consentiremos. Os velhos serão substituídos, mas não por aqueles que diante da menor dificuldade atacam raivosamente a linha do Partido. Não permitiremos que se quebre a unidade de nosso grande Partido! A velha e a jovem guarda nunca se cindirão! Na luta irreconciliável contra as tendências pequeno-burguesas, sob a bandeira de Lênin, obteremos a vitória! Pankrátov desceu da tribuna. Suas palavras provocaram uma tempestade de aplausos. No dia seguinte, uma dezena de pessoas reuniu-se na casa de Tufta. Dubava dizia: -Chúmski e eu partiremos hoje para Khárkov. Aqui já não temos nada a fazer. Procurem não se desagregar. Só nos resta esperar para ver que rumos tomam os acontecimentos. É claro que a conferência de toda a Rússia nos condenará, mas parece-me que é cedo para esperar represálias. A maioria decidiu comprovar-nos mais uma vez no trabalho. Continuar a luta aberta agora, particularmente depois da conferência, significaria sermos alijados do Partido, coisa que não entra em nosso plano de ação. É difícil julgar o que vai ocorrer. Parece-me que não temos mais nada que falar -. E Dubava levantou-se, dispondo-se a sair. Staroviérov, magro e de lábios finos, também se levantou. -Não te compreendo, Mitiái –disse gaguejando ligeiramente. –Será que as decisões da conferência não são obrigatórias para nós? Tzvetáev interrompeu-o bruscamente: – Formalmente, sim; do contrário, te tomarão a carteira do Partido. Veremos depois que vento sopra, mas agora nos dispersaremos. Tufta mexeu-se inquieto na cadeira. Chúmski, sombrio e pálido, com olheiras arroxeadas por causa das noites de insônia, estava sentado junto da janela, mordendo as unhas. Ao ouvir as últimas palavras de Tzvetáev, afastou-se de sua ocupação torturante e voltou-se para os que estavam reunidos. -Estou contra tais combinações –disse com voz surda e irritando-se de repente. –pessoalmente, considero que as resoluções da conferência são obrigatórias para nós. Defendemos nossas convicções, mas devemos submeter-nos às decisões da conferência. Staroviérov dirigiu-lhe um olhar de aprovação e gaguejou: -Eu queria dizer isso mesmo. Dubava cravou os seus olhos nos de Chúmski e disse em tom deliberadamente zombeteiro: -De um modo geral, ninguém te propõe nada. Ainda tens a possibilidade de te “arrependeres” na conferência provincial. Chúmski levantou-se como se o houvessem picado: -Que tom é esse, Dmítri? Digo-te francamente que tuas palavras me afastam de ti e me obrigam a meditar bem sobre minha posição anterior. Dubava limitou-se a dizer-lhe: -Não te restas mais que isso. Vai e arrepende-te, antes que seja tarde. E, ao despedir-se, deu a mão a Tufta e aos demais. Pouco depois saíram Chúmski e Staroviév. (*) Refere-se a uma expressão cunhada por Trotski de que a juventude seria o “barômetro” do Partido. Tratava-se de uma tática fracionista utilizada pelos oportunistas de tentar aproveitar o imenso número de jovens membros do Partido, que nele ingressaram após a Revolução de Outubro, e que por isso não conheciam a longa luta de Trotski contra Lênin e o Partido Bolchevique, desde os tempos anteriores à Revolução de 1905 , a fim de galgar prestígio para suas posições. Trotski repetidamente em seus discursos fazia questão de apresentar-se como “velho bolchevique”, e apontava as deficiências da “velha guarda bolchevique”, etc. Não raro, inclusive, aproveitando-se da sua condição de figura pública do Soviet de Petrogrado em outubro de 17, insinuava protagonismo na preparação da insurreição ao lado de Lênin. Stálin, vanguardeando a linha proletária e em luta irreconciliável contra o oportunismo de Trotski e seus sequazes, em mais de um documento demonstrou a falsidade dos argumentos de Trotski e que este, longe de ser “velho bolchevique”, somente rompeu com o menchevismo quando o partido de Lênin marchava já para arregimentar a classe operária em torno das posições da insurreição armada. E que, como toda figura pública do Partido, em seus discursos somente seguia as orientações traçadas pelo Comitê Central bolchevique e, uma vez que fugisse à essas orientações, o Partido simplesmente demove-lo-ia. Como a história provou, a tática traiçoeira e divisionista de Trotski foi totalmente derrotada. Para consulta ver Stalin, “Trotskismo ou Leninismo” , “A Revolução de Outubro e a tática dos comunistas russos”, “Compêndio de História do Partido Comunista (bolchevique) da União Soviética”, e outros. (Nota do MEPR). A morte de Lênin: p.401 O ano de 1924 assinalou sua entrada na história com um frio glacial. Janeiro enfureceu-se contra o país coberto de um manto de neve, e, em sua segunda metade, uivaram as tempestades e as nevascas prolongadas. Nas estradas de ferro do sudoeste, a neve interrompeu as linhas. A população lutava contra os elementos desencadeados. As hélices de aço dos limpa-neves quebravam os montões alvos, abrindo caminho para os trens. O frio e a tempestade rompiam os cabos gelados do telégrafo. De doze linhas trabalhavam apenas três: o telégrafo indo-europeu e duas linhas de cabo direto. Na sessão de telégrafos da estação de Chepetovka, três aparelhos “Morse” não cessavam por um momento sua conversa incansável, só compreensível para um ouvido acostumado. As telegrafistas eram jovens; o comprimento da fita escrita por elas, desde o primeiro dia de serviço, não passava de vinte quilômetros. Ao passo que o velho, seu companheiro de trabalho, começava já a terceira centena. Não lia as fitas como elas, nem rugava o cenho ao compor as palavras e frases difíceis. Escrevia no papel palavra após palavra, escutando atento as batidinhas do aparelho. Seu ouvido percebia: “A todos, todos, todos!” Enquanto escrevia o telegrafista pensou: “Certamente, uma nova circular sobre a luta contra a obstrução das linhas pela neve”. Atrás da janela, o vento da tempestade lançava flocos de neve contra a vidraça. Ao telegrafista parecia que alguém batia na janela: voltou a cabeça e, sem querer, ficou contemplando com admiração os belos desenhos feitos no vidro pela neve. Não há mão humana capaz de traçar essas gravuras delicadíssimas, caprichosas folhas e ramos. Atraído por esse espetáculo, deixou de escutar o aparelho e, quando retirou os olhos da janela, tomou a fita na palma da mão, para ler as palavras que tinham passado inadvertidas. O aparelho havia transmitido: “21 de janeiro, às seis horas e cinqüenta minutos…” O telegrafista anotou rapidamente o que leu e, largando a fita, apoiando a cabeça na mão, pô-se a escutar: “ontem, em Gorki faleceu”…O telegrafista anotou lentamente. Quantos comunicados alegres e trágicos havia escutado em sua vida! Ele era o primeiro a conhecer a felicidade e a dor alheias. Há muito tempo que havia deixado de pensar no sentido das frases sóbrias e truncadas; apanhava-as de ouvido e escrevia-as mecanicamente no papel, sem refletir no seu conteúdo. Agora alguém tinha morrido, e a alguém se comunicava isso. O telegrafista tinha esquecido o título: “A todos, a todos, a todos!”. O aparelho batia as teclas: “V-L-A-D-I-M-I-R  I-L-I-C-H”; o velho telegrafista traduziu em letras as batidas do aparelho. Continuava sentado tranquilamente, um pouco fatigado. Em alguma parte havia morrido um tal Vladimir Ilich e ele estava escrevendo hoje, para alguém, estas palavras trágicas; alguém estalaria em soluços de desespero e sofrimento, mas tudo isso lhe era indiferente, ele era uma testemunha à margem. O aparelho marcava pontos, traços, pontos, outra vez traços, e ele, dos sinais já conhecidos, formou a primeira letra e escreveu no papel: era o “L”. Depois dela escreveu a segunda: “E”. a seu lado acrescentou cuidadosamente um “N”. em seguida uniu a ele o “I”, e de um modo já automático anotou a última letra: “N”. O aparelho fez uma pausa e, durante um décimo de segundo, o telegrafista deteve seu olhar na palavra que acabava de escrever: LÊNIN. O aparelho continuava batendo as teclas, mas o pensamento que havia tropeçado casualmente nesse nome conhecido, voltou de novo a concentrar-se nele. O telegrafista olhou uma vez mais a última palavra: LÊNIN. Como? Lênin? O cristalino do olho refletiu em perspectiva todo o texto do telegrama. Por uns instantes o telegrafista olhou a folha de papel e, pela primeira vez em trinta e dois anos de trabalho, não acreditou no que tinha escrito: Por três vezes percorreu rápido as linhas, mas as palavras se repetiram insistentes: “Faleceu Vladimir Ilich Lênin”. O velho pô-se em pé de um salto, levantou a fita em espiral e cravou os olhos nele. A fita de dois metros de comprimento confirmava o que ele não podia acreditar! Voltou o rosto, lívido como o de um cadáver, para suas camaradas, e estas ouviram sua exclamação assustada: -Lênin morreu! A notícia da grande perda saltou da sala de aparelhos pelas portas abertas de par em par e, com a rapidez do vento tempestuoso, correu veloz pela estação, atravessou a nevasca, percorreu como um torvelinho as linhas férreas e as agulhas e, junto com a corrente de ar frio, interrompeu pela porta entreaberta do depósito ferroviário. No depósito, sobre o primeiro fosso, uma locomotiva estava sendo consertada pela Brigada de Reparações ligeiras. O velho Polientovski achava-se no fosso, debaixo de sua locomotiva, e mostrava aos ajustadores as partes avariadas. Sakhar Brusjak endireitava com Artiom a grade torcida. Ele a segurava na bigorna e Artiom descarregava sobre ela os golpes de seu martelo. Sakhar tinha envelhecido nos últimos anos; as durezas da vida haviam sulcado em sua testa rugas profundas. E as têmporas tinham se coberto de fios de prata. Suas costas encurvaram-se, e os olhos fundos eram sombrios. No vão iluminado da porta entreaberta do depósito apareceu, por um instante, uma figura humana, e as sombras do crepúsculo absorveram-na. Os golpes contra o ferro abafaram o primeiro grito, mas quando o homem que aparecera na porta chegou correndo onde estavam reparando a locomotiva, Artiom, que havia levantado um martelo, não descarregou o golpe. -camaradas! Lênin morreu! O martelo resvalou lentamente pelo ombro e a mão de Artiom deixou-o sem ruído sobre o chão de cimento. -Que é que disseste? –As mãos de Artiom agarraram como tenazes o coro do casaco de quem havia trazido a notícia terrível. E este, coberto de neve, ofegante, repetiu, já com voz surda e entrecortada: -Sim, camaradas, Lênin morreu. E pelo fato de que o homem já não gritava, Artiom compreendeu toda a espantosa verdade, e reconheceu o rosto de quem havia falado: era o secretário da organização do Partido. Os homens saíram dos fossos e escutaram em silêncio a notícia da morte daquele cujo nome era conhecido em todo o mundo. E junto às portas, obrigando todos a estremecerem, ressoaram os ruídos de uma locomotiva. No extremo oposto da estação, responderam os apitos de uma segunda, de uma terceira…Ao seu apelo poderoso, impregnando de alarma, uniu-se o apito da sirene da central elétrica, agudo e penetrante como o do vôo de um obus. Com o som límpido do bronze cobriu este chamado a bela locomotiva de marcha rápida tipo, “S”, pronta para sair rumo a Kiev conduzindo um trem de passageiros. O agente da G.P.U. estremeceu surpreso quando o maquinista da locomotiva polonesa do trem direto Chepetovka-Varsóvia , ao conhecer a causa dos apitos de alarma, depois de prestar atenção um instante, levantou a mão lentamente e puxou para baixo a corrente que abria a válvula do apito. Sabia que fazia ressoar o apito pela última vez, que não prestaria mais serviço naquela máquina, mas sua mão não se afastou da corrente e o som da locomotiva levantou de seus macios divãs os assustados mensageiros e diplomatas poloneses. O depósito enchia-se de gente, que afluía por todas as portas. Quando o grande edifício estava abarrotado, no fúnebre silêncio ressoaram as primeiras palavras. Falou o velho bolchevique Charábrin, secretário do Comitê Regional de Chepetovka. -Camaradas! Morreu o chefe do proletariado mundial, Lênin. O Partido sofreu uma perda irreparável, morreu aquele que criou e educou o Partido Bolchevique no ódio irreconciliável aos inimigos…A morte do chefe do Partido e da classe operária chama os melhores filhos do proletariado às nossas fileiras… Os acordes da marcha fúnebre; centenas de cabeças descobertas; e Artiom, que nos últimos quinze anos não havia chorado, sentia como a angústia lhe subia à garganta e como tremiam suas espáduas poderosas. Parecia que os muros do clube ferroviário não iam poder resistir ao impulso das massas humanas. No pátio, o frio era muito intenso; os dois frondosos abetos que se erguiam na entrada estavam cobertos de neve e de finos pedaços de gelo;mas na sala o ar estava muito pesado devido à estufa acesa e ao alento de seiscentas pessoas que desejavam assistir à homenagem fúnebre organizada pelo coletivo do Partido. Na sala não havia o ruído habitual nem rumor de conversas. Uma grande dor abafava as vozes; falava-se em voz baixa, e em centenas de olhos percebia-se dolorosa aflição. Era como se ali houvesse reunido a tripulação de um barco que houvesse perdido seu hábil timoneiro, arrastado por um vagalhão. Com igual silêncio os membros da direção ocuparam seus postos na mesa presidencial. O robusto Sirotenko levantou com cuidado a campainha, agitou-a apenas e de novo deixou-a sobre a mesa. Isto foi o suficiente para que, pouco a pouco, um silêncio angustioso se estendesse pelo salão. Imediatamente depois do informe, levantou-se Sirotenko, secretário-geral do coletivo. O que disse não surpreendeu ninguém, embora fosse extraordinário numa reunião fúnebre. Suas palavras foram essas: -Vários operários pedem aos presentes que examinem seu pedido; assinam trinta e sete camaradas –. E leu o documento. “Ao coletivo do Partido Comunista bolchevique da estação de Chepetovka, estrada de ferro do Sudoeste. A morte do Chefe nos chamou às fileiras dos bolcheviques. Rogamos que examinem nossa solicitação na reunião de hoje e nos admitam no Partido de Lênin”. Embaixo destas breves palavras havia duas colunas de assinaturas. Sirotenko leu-as, fazendo uma pausa de uns segundos depois de cada uma delas para que todos pudessem recordar os nomes conhecidos. -Stanislav Sigmúndovitch Polientovski, maquinista, trinta e seis anos de trabalho. Um murmúrio de aprovação percorreu a sala. -Artiom Andreievitch Kortcháguin, serralheiro, dezessete anos de trabalho. -Sakhár Filipovitch Brusjak, maquinista, vinte e um anos de trabalho. O murmúrio ia aumentando, e o homem continuava lendo junto à mesa, enquanto a assistência ouvia os nomes dos velhos operários ferroviários. Quando o primeiro que havia posto sua assinatura aproximou-se da mesa, na sala fez-se um profundo silêncio. O velho Polientovski não podia conter sua emoção, ao relatar a história de sua vida. -Dizer mais o que, camaradas? Todos sabem qual era a vida do trabalhador nos velhos tempos. Vivia escravo e morria mendigo na velhice. Reconheço que, quando estourou a revolução, me considerei velho. A família pesava sobre minhas costas e não vi o caminho do Partido. E se bem que na luta nunca ajudei o inimigo, raras vezes entrava em combate. No ano de 1905 fiz parte do comitê de greve nas oficinas da estação de Varsóvia, e marchava ao lado dos bolcheviques. Então era jovem e ardoroso. Para que recordar o passado? A morte de Ilich feriu-me no mais profundo do coração, perdemos para sempre o amigo e protetor, e não voltarei mais a falar de minha velhice!…Que alguém o diga com palavras mais bonitas, eu não sou mestre na oratória. Só afirmo que meu caminho é o dos bolcheviques, e não outro. A cabeça encanecida do maquinista moveu-se obstinada, e, sob as sobrancelhas brancas, seus olhos se cravaram nos que enchiam a sala, como se esperasse deles a decisão. E quando a direção pediu aos operários sem partido que se manifestassem, nem uma só mão se levantou contra e ninguém se absteve de votar a favor daquele homem baixinho, de cabeça branca. Polientovski retirou-se da mesa, já comunista. Na sala todos compreendiam que estava acontecendo algo de extraordinário. Ali, onde um instante atrás se encontrava o maquinista, levantava-se agora a figura enorme de Artiom. O serralheiro não sabia o que fazer de seus braços compridos e amarrou o boné. O casaco aberto de pele de ovelha, puído nas beiradas, e a gola da túnica militar cinza, cuidadosamente fechada com dois botões de cobre, davam à figura do serralheiro um aspecto limpo, de festa. Artiom voltou a cabeça para a sala e, por um instante, viu um rosto feminino conhecido. Galina, a filha do canteiro, encontrava-se entre suas companheiras de oficina de costura. A jovem sorria-lhe amavelmente; em seu sorriso havia aprovação e alguma coisa que ficava por dizer, oculta na comissura dos lábios. -Relata tua biografia, Artiom! –ouviu-se a voz de Sirotenko dizer. Foi mais difícil ao mais velho dos Kortcháguin começar a contar sua vida: não estava acostumado a falar em grandes reuniões. Até aquele momento não havia sentido a impossibilidade de expressar tudo que se acumulava em sua existência. As palavras saíam com dificuldade e, além do mais, a emoção não o deixava falar. Nunca havia experimentado coisa semelhante. Compreendia claramente que em sua vida se estava produzindo uma viragem repentina e que ele, Artiom, dava agora o último passo para aquilo que haveria de dar calor e conteúdo à sua dura e áspera existência. -Nossa mãe tinha quatro filhos –começou Artiom. A sala estava silenciosa. Seiscentas pessoas escutavam atentas o operário alto, de nariz adunco e olhos ocultos sob a franja negra das sobrancelhas. -Nossa mãe era cozinheira nas casas dos senhores. Meu pai mal o recordo, dava-se mal com minha mãe. Virava o copo além da conta. Vivíamos com mamãe. A pobrezinha não podia dar de comer a tantas bocas. Os patrões pagavam-lhe quatro rublos por mês, além da comida, e tinha que dobrar o espinhaço desde o amanhecer até a noite. Tive a sorte de ir dois invernos à escola primária, onde me ensinaram a ler e a escrever, mas, quando cheguei aos nove anos, minha mãe não teve outro remédio senão levar-me como aprendiz às oficinas de serralheria. Sem salário, três anos, pela comida…O dono das oficinas era um alemão chamado Ferster. Não queria admitir-me por causa da minha pouca idade, mas eu era um menino forte e minha mãe me havia acrescentado dois anos. Trabalhei três anos na casa daquele alemão. Não me ensinavam o ofício, e me faziam andar de um lado para outro, e dar recados e buscar vodka. O alemão bebia até cair de costas…Enviavam-me para buscar carvão e ferro. A patroa converteu-me em seu escravo, fazia-me tirar os urinóis e descascar batatas. Todo o mundo procurava dar-me pontapés, com freqüência, sem motivo algum, porque sim, por costume; quando fazia alguma coisa que não era do agrado da patroa –sempre de mal humor por causa das bebedeiras do marido- sapecava-me no focinho um par de socos. Fugia dela para a rua, mas onde podia ir, a quem podia queixar-me? Minha mãe encontrava-se a quarenta verstas e, além disso, não podia dar-me amparo. Na oficina não era melhor. Lá o irmão do proprietário mandava em tudo. Aquele canalha gostava de fazer brincadeiras comigo. “Da-me –dizia –aquela arandela”, e apontava para o chão, para o canto onde se encontrava a forja. Eu levava a mão à arandela, recém-forjada, tirada há pouco da fornalha. No chão estava negra, mas, quando a apanhava, queimava-me os dedos até soltar a pele. Gritava de dor, e ele relinchava, retorcendo-se de riso. Não podendo resistir mais a todo aquele tormento, fugi para casa de minha mãe. Mas ela não tinha onde colocar-me. Levou-me outra vez ao alemão; eu chorava pelo caminho. No terceiro ano começaram a ensinar-me algo do ofício, mas continuaram dando-me bofetadas. Voltei a fugir e fui parar em Starokonstantínov. Nesta cidade pus-me a trabalhar numa salsicharia, e ali estive lavando tripas durante mais de ano e meio. Nosso patrão perdeu o negócio nas cartas, não nos pagou nem um copeque por quatro meses de trabalho e desapareceu se deixar rastro. Assim saí daquele buraco. Peguei um trem, saltei em Jmérinka e fui em busca de trabalho. A sorte foi que um operário do depósito de locomotivas se compadeceu de minha situação e, ao se inteirar que eu sabia algo do ofício de serralheiro, me fez passar por seu sobrinho, para solicitar aos chefes que me admitissem. Por minha estatura deram-me dezessete anos e comecei a trabalhar como ajudante de serralheiro. Há mais de oito anos que trabalho aqui. Isto é o que diz respeito à vida anterior; quanto à daqui, já sabem tudo. Artiom passou o gorro pela testa e soltou um profundo suspiro. Ainda tinha que dizer o fundamental, o mais duro para ele, sem esperar que ninguém lhe perguntasse. E, franzindo suas sobrancelhas espessas, continuou a novela de sua vida: -Cada um de vocês pode perguntar-me por que não me encontro entre os bolcheviques desde que se acendeu o fogo. Que posso dizer? Ainda me falta muito para ser velho, e só hoje encontro meu caminho aqui. Que vou ocultar? Não tínhamos visto ainda esse caminho no ano de 18, quando nos declaramos em greve contra os alemães. Devíamos ter começado naquela época. Jukhrái, o marinheiro, mais de uma vez falou conosco. Foi já no ano de 20 que empunhei o fuzil. Terminou a confusão, jogamos os brancos no Mar Negro e regressamos. Depois a família, os meninos…Encerrei-me em minha casa. Mas agora que está morto nosso camarada Lênin e o Partido lançou o apelo, comecei a olhar minha vida e compreendi o que falta nela. É pouco defender nosso Governo; temos que levantar todos juntos, como uma família unida, para ocupar o lugar de Lênin, para que o Poder Soviético se eleve como uma montanha de aço. Devemos ser bolcheviques, pois o Partido é nosso. Com simplicidade, mas com profunda franqueza, perturbando-se com o estilo defeituoso de seu discurso, o serralheiro terminou e, como se houvesse tirado um peso enorme em cima de si, ergue-se e ficou esperando as perguntas. -Alguém deseja fazer alguma pergunta? –inquiriu Sirotenko, quebrando o silêncio. As filas humanas moveram-se, mas da sala não responderam imediatamente. Um foguista, negro como um besouro, que havia chegado à reunião diretamente de sua locomotiva, disse com firmeza: -Que é preciso perguntar? Será que não o conhecemos? Deve-se admiti-lo, e nada mais! O robusto ferreiro Guiliaka, vermelho pelo calor e a tensão de nervos, afirmou com voz catarrosa: -Este não descarrilará, será um camarada firme. Passe à votação, Sirotenko! Nas filas de trás, onde estavam sentados os konsomóis, levantou-se alguém cujo rosto não se via na semiescuridão, e perguntou: -Diga o camarada Kortcháguin por que se plantou na terra, e se a vida camponesa não o afasta da psicologia proletária. Um ligeiro murmúrio de desaprovação percorreu a sala, e uma voz protestou: -Falas com simplicidade. Para que empregas a retórica? Mas Artiom já respondia:

-Está  bem, camarada. O rapaz tem razão quando diz que me plantei na terra. É certo, mas nem por isso perdi a consciência operária. E isto fica liquidado desde hoje. Transportar-me-ei com minha família para mais perto do depósito e estarei mais seguro, já que a terra não me deixa respirar.

O coração de Artiom voltou a estremecer quando olhou o bosque de mãos levantadas, e já sem sentir o peso do corpo, sem dobrar as costas, dirigiu-se para seu lugar. Atrás de si ouviu a voz de Sirotenko:

-Por unanimidade.

O terceiro a deter-se junto à mesa presidencial foi Sakhar Brusjak. O velho silencioso, ajudante de Polientovski, que há tempo já  chegara a maquinista, terminava o relato de sua vida de trabalhador, e quando chegou aos últimos dias, disse em voz baixa, mas de maneira que todos ouvissem:

-Estou com a obrigação de terminar a tarefa de meus filhos. Eles não morreram para que eu ficasse retirado em casa com meu sofrimento. Não soube preencher o vazio que deixou sua morte, mas a do Chefe abriu-me os olhos. Não me perguntem pelo passado, nossa verdadeira vida começa agora.

Sakhar, emocionado pelas recordações, franziu o cenho sombrio, mas quando, sem feri-lo com nenhuma pergunta áspera, admitiram-no no Partido levantando unanimemente as mãos, seus olhos se iluminaram e sua cabeça branca já não se inclinou mais.

Até  noite avançada continuou no depósito de locomotivas o exame dos que iam ser recrutados. Só admitiam no Partido os melhores, os que conheciam bem, os que durante toda sua vida tinham demonstrado ser dignos dele.

A morte de Lênin converteu em bolcheviques centenas de milhares de operários. A morte do Chefe não desorganizou as fileiras do Partido. Da mesma maneira que a árvore, cujas raízes poderosas penetraram profundamente na terra, não morre se lhe cortam a copa.