“Big Pharma: o monopólio do atraso” AND

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*Rafael Alessandro Bossoni

A indústria farmacêutica é um grande monopólio mundial – o Big Pharma – e, como nos lembra Lenin, “o monopólio capitalista gera uma tendência para a estagnação” pois, com os preços monopolistas fixados, “desaparecem até certo ponto as causas estimulantes do progresso técnico” [1]. Nos parágrafos a seguir, vamos esmiuçar o Big Pharma e mostrar, a partir de casos concretos, seu caráter de atraso.

As vacinas de Covid-19

Uma objeção óbvia a essa caracterização é a agilidade na qual as vacinas para Covid-19 foram produzidas. Antes de prosseguirmos, convém superar esse suposto obstáculo. Se o Big Pharma promove o atraso do desenvolvimento técnico-científico, pode se perguntar o leitor, como foi possível fazer em 10 meses, no caso da Covid-19, o que normalmente demoraria 10 anos?

Em matéria publicada no portal da BBC, em finais de 2020, aparece a seguinte explicação: “O desenvolvimento em tempo recorde foi possível graças a muitos anos de pesquisa de cientistas, cujo conhecimento acumulado possibilitou uma resposta rápida ao novo desafio. Mas também dependeu de muito trabalho intensivo nos últimos dez meses, injeção de grandes quantias de dinheiro no projeto, talento científico e também de um pouco de sorte” [2].

O grosso dessa pesquisa não é realizado pelo Big Pharma, mas por universidades e centros de pesquisa financiados com dinheiro público ou, por vezes, nas pequenas empresas de biotecnologia [3]. Por exemplo, foram pesquisas com vetor viral não replicante, realizadas na Universidade de Oxford, que originaram a vacina comercializada pela AstraZeneca enquanto que o mecanismo da RNA mensageiro, presente na vacina da Pfizer, foi desenvolvido na BioNTech, uma pequena empresa de biotecnologia.

Além de não ser responsável pelas descobertas basais, o Big Pharma também não aportou as grandes quantias de dinheiro. Pelo contrário, os laboratórios farmacêuticos receberam mais de 12 bilhões de dólares, ainda no primeiro ano de pandemia, de potências imperialistas como os Estados Unidos (USA) e membros da União Europeia [4]. A contribuição principal do Big Pharma foi patentear as vacinas e praticar preços de monopólio para espoliar países dominados [5], não sem anuência de seus lacaios regionais [6].

A inovação na indústria farmacêutica

Tomaremos como base o caso dos USA, o mercado mais lucrativo do mundo, no qual o Big Pharma faz lobby e campanhas publicitárias contra a regulamentação dos preços de medicamentos sob a alegação de que gasta vultosos fundos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) [3]. Marcia Angell [3] nota que, do gasto anual das farmacêuticas, o montante destinado para marketing e administração é maior do que é utilizado em P&D de novas drogas. O Big Pharma chega a lucrar mais do que gasta com P&D. Trata-se de um dos ramos mais lucrativos da indústria, com retorno de cerca de 17% do capital investido [7]. 

Como isso se traduz em inovação? A cada ano, dezenas de novas drogas são aprovadas para comercialização, nos USA, pela FDA, a agência reguladora. Marcia Angell propõe condições mínimas como critério para considerar um novo medicamento como uma inovação. Ele precisa ser uma nova entidade molecular, diferente das demais já em uso. Ele também precisa apresentar chances de ser mais benéfico do que os demais tratamentos existentes no mercado [3]. Quando há essas chances, o novo medicamento ganha prioridade na avaliação da FDA.

Angell analisou os dados de 1998 a 2002 e constatou que, dos 415 novos medicamentos aprovados, 133 (32%) são moléculas novas. Apenas 58 receberam prioridade na avaliação da FDA [3]. Como são dados antigos, replicamos o método de Angell para o quinquênio de 2017 a 2021: dos 256 novos medicamentos aprovados, 87 (33%) são novas moléculas. Destes, 76 receberam prioridade na avaliação [8].

No quinquênio de 1998-2002, 14% das drogas aprovadas tinham potencial de ser uma inovação. No segundo período analisado, esse número passou para 30%. À primeira vista, parece que o Big Pharma dobrou o montante de inovações. Na verdade, essa melhora é apenas relativa, pois o número total de drogas aprovadas caiu quase 40%. Em termos absolutos, esses dados mostram que o incremento foi mínimo. Num intervalo de duas décadas, a quantidade de potenciais inovações aprovadas por ano passou de 12 para 15.

Ademais, o critério de Angell é um bastante flexível, pois uma droga receber prioridade na avaliação não implica necessariamente que ela se trata de um aprimoramento do ponto de vista clínico. Podemos citar como exemplo o Aduhelm (aducanumab), uma droga injetável aprovada para o tratamento da doença de Alzheimer [9].

Seus estudos clínicos de fase-III, realizados para a aprovação de novas drogas, tiveram que ser interrompidos antes do final porque o Aduhelm, por um lado, não produziu nenhum benefício detectável e, por outro, os pacientes apresentavam altas taxas de efeitos adversos, como edema cerebral [9]. Não obstante, a Biogen, detentora da patente, continuou acompanhando os participantes do estudo. Na análise dos resultados, a empresa lançou mão de uma série de práticas antiéticas e anticientíficas, como excluir os dados daqueles participantes que não melhoraram com o medicamento [9]. De tanto ser torturados, os dados confessaram o que a empresa queria.

Numa reunião em novembro de 2020, dos 11 membros do comitê de aprovação de novas drogas da FDA, oito votaram contra a aprovação do Aduhelm, com um voto favorável e duas abstenções. A despeito disso, em conluio com a FDA, a Biogen conseguiu uma autorização para comercializar a droga em junho de 2021. No mesmo dia, a Biogen anunciou que o preço anual do medicamento seria de 56 mil dólares e viu o preço de suas ações subir 38%, incorporando 16 bilhões de dólares ao seu valor de mercado [10].

Mais do mesmo

E quanto às demais drogas aprovadas a cada ano? Se não são inovações, elas são o quê? Quando uma droga é aprovada pela FDA, ela ganha direitos de exclusividade e, por um certo tempo, nenhuma outra fabricante pode ter o mesmo medicamento aprovado para comercialização. Todavia, é possível patentear outra substância da mesma classe química, que tenha efeitos semelhantes e benefícios equiparáveis. São as chamadas “me-too drugs”, algo como “drogas eu também” ou, adaptando para o português, drogas mais do mesmo.

Um exemplo paradigmático é o Losec (omeprazol), da AstraZeneca, uma droga utilizada para tratar doença do refluxo gastroesofágico, que vendeu na casa de bilhões de dólares anuais. Quando a patente estava para vencer, a fabricante lançou no mercado o Nexium, cujo princípio ativo (esomeprazol) é uma molécula que está presente na fórmula do próprio omeprazol. A fabricante financiou estudos questionáveis, que comparavam o esomeprazol com doses inadequadas do omeprazol, fazendo o novo medicamento se sobressair em relação ao antigo. Além desses resultados servirem para dar uma falsa noção de progresso técnico-científico, a AstraZeneca gastou cerca de 500 milhões de dólares em campanhas publicitárias voltadas para profissionais e pacientes. Assim, conseguiu substituir no mercado o Losec pelo Nexium, que tinha um preço muito maior, e manteve seus benefícios de monopólio por mais alguns anos [3]. Exatamente como constatou e previu Lenin.

Isso se assemelha ao facelift, prática na qual as empresas do ramo automobilístico lançam o mesmo carro todo ano, com ligeiras alterações no design, por exemplo, dos faróis e do capô. Há outras drogas mais do mesmo em relação ao omeprazol: lansoprazol, dexlansoprazol, rabeprazol e pantoprazol. Outro exemplo é o do antialérgico Claritin (loratadina). Ele foi sucedido pelo Clarinex, cujo composto ativo é a desloratadina, uma molécula na qual a loratadina se transforma no fígado ao ser ingerida. Não obstante ter exatamente o mesmo princípio ativo do seu antecessor, o Clarinex foi aprovado como uma inovação pela FDA [3].

Das supostas inovações, vimos que algumas são tratamentos irrelevantes e/ou danosos do ponto de vista clínico, como o Aduhelm, e outras são, na verdade, drogas mais do mesmo, como Clarinex. Mas e quanto àquelas genuínas inovações? Elas têm sua origem principalmente em pesquisas financiadas com verba pública. Embora pesquisa e desenvolvimento do medicamento ocorram antes da participação da indústria, ele ainda assim pode ser patenteado e a fabricante obter direitos de monopólio. Foi justamente o que aconteceu com vacina Oxford/AstraZeneca.

Em algumas situações, como foi o caso do AZT para HIV/AIDS, o medicamento chega a ter sua eficácia demonstrada em testes clínicos de fase-III com verba pública e somente depois é licenciado para comercialização por alguma empresa do Big Pharma [3].

Marketing

Dada sua baixíssima capacidade de inovação, o Big Pharma aposta nos elevados gastos em marketing para tocar seu negócio. É importante notar que peças publicitárias voltadas para o consumidor final são apenas uma pequena e não tão relevante parte desse marketing. A seguir, apresentaremos algumas das principais estratégias de marketing utilizadas pelo monopólio.

O Big Pharma tem ações específicas para os assim chamados líderes de opinião, que são profissionais de referência cuja atuação determina a conduta de colegas. Nesse sentido, as fabricantes contratam esses líderes de opinião para atuar como consultores, assessores e palestrantes e patrocinam viagens, estadias e alimentação em congressos [3]. Essa “generosidade” cria neles uma boa vontade para com os medicamentos de seus benfeitores e, por conseguinte, influencia o restante da comunidade médica.

Uma pesquisa recente mostrou que o gasto da indústria farmacêutica especificamente com psiquiatras dos USA, entre 2014 e 2020, foi de 340 milhões de dólares. Nesse período, sete novas drogas psiquiátricas foram aprovadas. Dois dos principais psiquiatras líderes de opinião, cujos soldos somaram mais 12 milhões de dólares, escreveram 20 artigos em revistas médicas avaliando-as como seguras e eficazes e recomendando seu uso [11].

Outro caso interessante é o da prescrição “off-label”, que é o uso de um medicamento para condições não aprovadas pela agência reguladora. Por exemplo, a prescrição de cloroquina ou de ivermectina para Covid-19 é “off-label”. Se o laboratório quiser aprovar uma droga como tratamento nesses casos, precisa realizar novos estudos clínicos. Contudo, médicos têm a prerrogativa de assim prescrevê-la, bastando estar convencidos de que é benéfica nessa situação. Desse modo, o mercado daquela droga se amplia fácil e rapidamente para o Big Pharma [12]. Além disso, se o conselho de medicina “não apoia nem condena” tal prática [13], tanto melhor para a indústria farmacêutica.

Esse convencimento tipicamente é realizado com a educação médica continuada. Isto é, cursos, conferências, aulas e palestras, bancados pelas farmacêuticas e “gratuito” para profissionais, nos quais os novos “avanços” médicos são apresentados [3]. Temos um flagrante conflito de interesses: são líderes de opinião, pagos pelo Big Pharma, os responsáveis por avaliar o quão bom é o novo tratamento.

As farmacêuticas também financiam associações em “defesa dos direitos” de pessoas com doenças ou transtornos, as quais realizam campanhas de “conscientização”. Tais campanhas servem principalmente para divulgar sintomas de doenças, para as quais o Big Pharma produz tratamentos, e favorecer uma maior procura por serviços de saúde. Como consequência, há um aumento no número de diagnósticos e, obviamente, nas prescrições de medicamentos. O movimento de expandir as fronteiras do que é patológico, também favorecido por esse tipo de campanha, cria uma nova gama de potenciais consumidores para os fármacos do Big Pharma.

Congressos médicos tornaram-se, também, eventos publicitários. Em maio de 2022, foi noticiada uma micareta com música, bebidas e abadás, oferecida “gratuitamente” para os participantes do 40º Congresso Brasileiro de Pediatria, realizado pela Sociedade Brasileira de Pediatria. O objetivo era a promoção do antialérgico Alektos, de uso pediátrico. Para entrar na festa, profissionais precisavam fornecer seus dados pessoais, contato e número de registro no conselho de medicina [14].

A solução passa por uma Nova Democracia

Inovações são possíveis e, em certas circunstâncias, até mesmo em pouquíssimo tempo, como aconteceu com as vacinas de Covid-19. Contudo, desenvolver uma nova droga verdadeiramente relevante é um tiro no escuro, então essa parte da pesquisa é feita com dinheiro público. Sem embargo, lançar outra droga mais do mesmo para manter privilégios de monopólio ou patentear um medicamento desenvolvido com verba pública, cuja eficácia já foi demonstrada, é um tiro certo do ponto de vista financeiro. No caso de drogas ineficazes ou de drogas mais do mesmo, o marketing cumpre o papel de fazer a roda do lucro girar.

O monopólio farmacêutico e a tecnociência comercialmente orientada, que é a produção e a aplicação de conhecimento científico de maneira descontextualizada da realidade social, são incapazes de atender aos anseios populares. Mas uma ciência e uma tecnologia desenvolvidas, que sirvam ao povo, estejam sob controle das massas e possam dar conta dessa tarefa, são impensáveis dentro dos limites do velho Estado. Somente numa nova e verdadeira democracia teremos condições de colocar as necessidades do povo acima do lucro privado. 

* Rafael Alessandro Bossoni é psicólogo. CRP-08/31494.

Notas:

[1] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/cap8.htm

[2] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55049893

[3] Angell, Marcia. The truth about the drug companies: How they deceive us and what to do about it. Random House Trade Paperbacks, 2005.

[4] https://www.istoedinheiro.com.br/covid-19-gera-avalanche-de-financiamentos-bilionarios-para-vacinas/

[5] https://anovademocracia.com.br/noticias/15037-a-polemica-da-vacina-contra-a-covid-19-vacina-para-o-povo-ja

[6] https://anovademocracia.com.br/noticias/16181-pazuello-negociou-vacina-pelo-triplo-do-preco-e-mentiu-na-cpi

[7] https://www.insidermonkey.com/blog/5-most-profitable-industries-in-the-world-in-2021-946645/3/

[8] https://www.fda.gov/drugs/development-approval-process-drugs/new-drugs-fda-cders-new-molecular-entities-and-new-therapeutic-biological-products

[9] https://www.madinamerica.com/2021/05/ethical-issues-raised-fda-collaboration-biogen-re-review-failed-drug/

[10] www.nytimes.com/2021/06/07/health/aduhelm-fda-alzheimers-drug.html

[11] Whitaker R, Gøtzsche PC. The pervasive financial and scientific corruption of psychiatric drug trials. Institute for Scientific Freedom 2022; 23 March.

[12] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/07/farmaceuticas-faturaram-mais-de-r-1-bilhao-com-kit-covid-na-pandemia-segundo-relatos-a-cpi.shtml

[13] https://portal.cfm.org.br/artigos/o-conselho-federal-de-medicina-e-a-covid-19/

[14] https://theintercept.com/2022/05/30/mantecorp-farmasa-alektos-remedio-pediatras-micareta-abada/