Reproduzimos a seguir o editorial semanal do Jornal A Nova Democracia publicado em 30/11/2021
O Brasil vive um dos momentos mais dramáticos de sua história republicana. A incrível conjunção de crises – econômica, política, sanitária, social e moral – empurra milhões de brasileiros para o desemprego e a miséria. Ultrapassamos, em menos de dois anos, a escandalosa cifra de mais de 600 mil mortes em decorrência da Covid-19, boa parte das quais eram evitáveis, se o governo militar do fascista Bolsonaro e dos generais não tivesse aplicado uma política deliberadamente genocida, pautada na negação e retardo da aplicação da vacinação em massa e na defesa do famigerado “tratamento precoce”. A isso, se soma a continuidade das execuções policiais nas favelas, como nos casos tenebrosos do Jacarezinho e do Salgueiro, e a implacável perseguição e matança de camponeses e povos originários no interior do País.
Este contexto, justamente, reclama a participação decidida, ao lado das massas populares, dos autênticos intelectuais. Como, aliás, ocorreu em outros momentos importantes da nossa história: desde o corajoso depoimento (não isento dos preconceitos do seu tempo, é verdade) de Euclides da Cunha sobre a brava resistência de Canudos, passando pela mobilização antifascista dos anos 30 e 40 – período que viu nascer o ensino superior estruturado no País, de que se destacaram professores como Anísio Teixeira e, um pouco depois, Darcy Ribeiro, de ideias progressistas – até a luta contra o regime militar, quando os melhores cientistas brasileiros preferiram a cadeia e o exílio à acomodação com os generais golpistas (de que podemos destacar, dentre tantos, o sanitarista Josué de Castro), sempre o povo brasileiro pôde contar com o engajamento, não apenas acadêmico, mas político, destes autênticos servidores das massas, que reverberavam, mesmo nas suas contradições reformistas, os anseios e os dilemas dos milhões de operários e camponeses. A própria existência objetiva da contradição entre o campo socialista e o imperialismo condicionava a atuação de uma intelectualidade que não duvidava, em nenhum momento, que o conhecimento produzido nos seus gabinetes e laboratórios não era neutro, que era necessário agir politicamente e que o papel do cientista é colocar seu trabalho acima dos mesquinhos interesses corporativos e pessoais.
Nas últimas décadas, a realidade tornou-se muito diversa. O outrora pujante movimento de massas refluiu, sob a hegemonia do oportunismo eleitoreiro mais tacanho, e, no esteio da ofensiva mundial contrarrevolucionária desatada a partir da restauração capitalista na China Popular (1976), aprofundada com a queda do muro de Berlim, a declaração pelo imperialismo norte-americano da “Nova Ordem Mundial” sobre o sangue do povo iraquiano e as cinzas da União Soviética e imposição pelo “Consenso de Whashington” do “pensamento único”, floresceu uma verdadeira filosofia da decadência entre a intelectualidade acadêmica (não só aí, aliás, mas é a esta que nos referimos no presente editorial). Onde antes se apregoava indissociabilidade entre produção científica e engajamento político, predomina agora a separação entre um e outro; onde antes se apregoava a necessidade de servir às massas e à cultura nacional, vigora agora o corporativismo mais estreito e a busca da maior integração possível à ordem e ao “consenso cosmopolita” estabelecido; onde antes se apregoava a defesa da ciência como instrumento de transformação social, predomina agora a renúncia a qualquer projeto que persiga aquelas ideias, tachadas de “ultrapassadas” e “ideológicas”, como se não fosse pura ideologia burguesa o individualismo e a visão mística de mundo que campeiam sob a alcunha de “pós-modernismo”. Quando, enfim, seria mais necessário que as universidades estivessem de portas abertas, para dar combate militante à negação da ciência e aos ataques inéditos desferidos contra elas próprias, permanecem entretanto de portas fechadas, de costas para os seus estudantes (a maior parte dos quais são filhos de trabalhadores, que não têm acesso a internet, biblioteca e locais apropriados para estudo nas suas casas), para os técnico-administrativos e trabalhadores terceirizados (como pessoal da manutenção, segurança e limpeza, para os quais nunca houve a opção de ficar em casa) e para a sociedade em geral.
Num momento em que, pela mobilização social que se fez ao longo da pandemia – que chegou a ameaçar o mandato de Bolsonaro -, o Brasil já imunizou toda a sua população adulta, o discurso de parte da burocracia acadêmica de que não há condições para o retorno das aulas presenciais configura-se, já, como grosseira negação da ciência e funciona como linha auxiliar dos privatistas e reacionários, que pretendem destruir o ensino superior público e gratuito. É preciso fazer ver aos professores com um mínimo de bom senso e honestidade que tal “autodefesa” é, na verdade, uma espécie de suicídio coletivo. De um lado, o fato de as universidades permanecerem trancadas facilita a tarefa do governo de turno de cortar de modo brutal o seu financiamento. Assim, o Projeto de Lei Orçamentário da União apresentado para 2022 prevê uma redução de 15,3% da verba destinada às universidades federais em relação ao montante empenhado em 2019. De outro lado, tal desmobilização das universidades favorece a repercussão do discurso posto em circulação pela extrema-direita de que o conhecimento aí produzido, sobretudo no âmbito das denominadas ciências humanas, é supérfluo e desnecessário. Diante disto, deve-se sublinhar que somente as universidades ocupadas, com debate e mobilização permanentes, poderão criar condições para que tal cenário seja revertido, inclusive no que toca às garantias sanitárias.
A propósito, convenhamos que, quando certas pessoas, bem pagas pela sociedade (no contexto brasileiro, ao menos), abrem mão de qualquer esforço e mesmo risco pessoal em defesa do bem comum, e cogitam seriamente permanecer nas suas largas residências à margem de todas as outras categorias de trabalhadores, isto não deixa de ser uma confissão de inutilidade. Pois sim, conhecimento que só sirva para ostentar títulos e assegurar uma vida confortável, integrada, ainda que de modo subalterno, à ordem, não pode ser relevante. De Sócrates, há mais de dois mil anos, que preferiu a morte a renegar suas ideias perante seus acusadores, tal como Giordano Bruno que se negou a abjurar da verdade frente ao selvagem e obscuro Tribunal da Inquisição da Igreja Católica Romana ao custo de ser queimado vivo, ao casal de físicos atômicos Julius e Ethel Rosenberg, assassinados na cadeira elétrica por contribuir para acabar com o monopólio da bomba atômica norte-americano, há 70 anos, só produziu algo de grande aqueles que trabalharam não para si próprios mas para a humanidade, ao ponto de sacrificar a própria vida no interesse desta tarefa. Nunca a boa ciência foi neutra, inofensiva ou indene às vicissitudes e aos riscos inerentes do processo histórico da Humanidade.
Todavia, não exigimos tanto. Já seria suficiente, por ora, que a burocracia acadêmica e parte dos professores que a apoiam voltassem ao batente, como todos os outros trabalhadores. Na verdade, não custa lembrar que a burocracia, sobretudo seus setores mais abastados, forma ao lado das forças armadas a espinha dorsal do Estado reacionário, partilha da mesma cultura de casta e semifeudal das classes dominantes, e também será derrubada pela Revolução de Nova Democracia. Não apenas do lado de fora dos muros universitários, portanto, mas também no seu interior, existe e cobra tomada de posição a luta de classes.