Marighella e a promessa não cumprida

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Escrito por José Ribamar, publicado por A Nova Democracia.

Apesar dos erros, Mariguella rompeu com o pacifismo do PCBrasileiro e traçou a via da luta armada.

O filme Marighella, de Wagner Moura, finalmente estreou nos cinemas. Em que pese os limites da obra, já analisados na matéria O ‘cinema anistia’ e Marighella, de Wagner Moura, disponível no portal de AND, o interesse renovado pela figura deste revolucionário traz a oportunidade para que possamos, desde esta tribuna, comentar uma vez mais sobre os seus posicionamentos e sua linha política.

Partido e luta armada

À época em que rompe com o PCBrasileiro, Marighella era um quadro histórico importante, ex-prisioneiro político e ex-deputado. Homem de partido até então, marxista-leninista, manteve-se fiel à linha do partido até onde pôde. O engessamento da luta interna imposta pela camarilha prestista e a capitulação da agremiação frente à luta de classes após o golpe fascista de 1964 foram condições para impulsionar a saída não somente de Marighella, como de outros militantes que agruparam-se em diversas organizações, entre estas, a que se conforma como Ação Libertadora Nacional (ALN). 

O posicionamento de Marighella foi reflexo da luta contra o burocratismo, o pacifismo e o revisionismo nos quais havia se chafurdado a direção do PCBrasileiro sob influência das teses de Nikita Kruschev e do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), de 1956 – notadamente a da “transição pacífica” ao socialismo –, culminando no seu V Congresso (1960), reformista e revisionista, que colocava a classe e o povo à reboque da grande burguesia (tomada como “burguesia nacional”).

Em sua Carta à Comissão Executiva do Partido Comunista Brasileiro (1966), assim Marighella se colocava: “Depois de tanto se ter falado que a violência das classes dominantes se responderia com a violência das massas, nada foi feito para que as palavras coincidissem com os atos. Esquece-se o prometido e continua-se a pregar o pacifismo. Falta o impulso revolucionário, a consciência revolucionária, que é gerada pela luta. A saída do Brasil (a experiência atual está mostrando) só pode ser a luta armada, o caminho revolucionário, a preparação da insurreição armada do povo, com todas as consequências e implicações que daí resultarem”. Isso, para Marighella, devia-se à sua defesa de que “a questão mais importante, a fundamental, é a questão do poder”, ou seja, sua tomada de posição pela doutrina marxista contra o revisionismo, e não de um simples desespero frente ao fascismo dos gorilas, sobretudo após o Ato Institucional Número 5 (AI-5) de 1968, como o filme retrata.

Todavia, diferente dos quadros que em 1962 iriam iniciar a luta pela Reconstrução do Partido Comunista do Brasil, conformando-o enquanto verdadeiro partido marxista-leninista, a ruptura de Marighella teria um conteúdo ideológico-político muito menos abrangente. Apoiando-se no castrismo, através de sua aproximação com a Organização Latino-americana de Solidariedade (Olas), Marighella negou a necessidade da direção do Partido Comunista sobre a luta armada. Considerando-o uma “máquina pesada demais”, generalizou o que é burocratismo de uma direção revisionista como sendo universal a todo Partido Comunista. No lugar da organização de vanguarda do proletariado, ele defendeu “frentes”, em uma posição essencialmente correspondente às “organizações político-militares” impulsionadas por Cuba. Isso conduziu a uma concepção militarista de revolução e pequeno-burguesa sobre sua direção, em que “a ação que faz a vanguarda” e que a organização partidária seria “perda de tempo”1.

Ainda assim, a ALN foi uma organização revolucionária que reuniu milhares de brasileiros que buscavam romper com a estagnação do revisionismo e desenvolver a luta armada contra o regime militar como a única condição para se instaurar um governo verdadeiramente popular e democrático, no rumo do Socialismo. O problema nesse ponto era, portanto, falta de clareza ideológico-política, com certo ecletismo teórico. Essas limitações de Marighella estavam suficientemente claras àqueles que, naquela época, buscavam no pensamento mao tsetung as soluções para seus problemas, aos quais Marighella não se juntou devido às suas limitações ideológicas.

Cidade e campo

Tendo em conta o campesinato como “fiel da balança”, Marighella centrou também sua crítica ao revisionismo de Prestes sobre a questão agrária, da qual era um ávido estudioso2, identificando a relação de fundo dela com o eleitoralismo e o pacifismo. “A subordinação e a perplexidade ante a burguesia e sua liderança impelem ao menosprezo do campesinato na revolução brasileira. Daí a causa porque o trabalho no campo jamais constitui atividade prioritária. (…) Entretanto, o camponês é o fiel da balança da revolução brasileira, e sem ele o proletariado terá que gravitar na órbita da burguesia, como acontece entre nós, na mais flagrante negação do marxismo. Sem o camponês, o Partido não fará outra coisa senão acordos políticos e acordos eleitorais de cúpulas, para não falar em barganhas”3.

Portanto, para Marighella, a guerrilha urbana não era um fim em si mesma, mas servia como forma tática de “acumular” forças e preparar o início da “guerrilha rural”, que era estrategicamente a principal. No documento Sobre problemas e princípios estratégicos, de 1969, Marighella pontua que a “cidade é a área de luta complementar” e que se, “por qualquer equívoco, a luta na cidade for encaminhada como luta decisiva, a luta estratégica na área rural, onde estão os camponeses, ficará relegada a um plano secundário. Vendo a pouca ou nenhuma participação dos camponeses na luta, a burguesia se aproveitará de tal circunstância para torpedear a revolução e deixá-la a meio caminho. Quer dizer, para manobrar com o proletariado, desprovido do apoio de seu aliado fundamental, o camponês, e tratará de conservar intacta a máquina burocrático-militar do Estado”. Essa guerrilha rural iria incorporar os camponeses, sendo o embrião do “exército revolucionário de libertação nacional”.

Na prática, a ALN não alcançou nunca tal “acúmulo”, levando à situação em que ano após ano Marighella se pronunciava anunciando que “esse será o ano da guerrilha rural”4 – promessa nunca cumprida. A guerrilha urbana nunca conseguiu, por tais erro de concepção, passar para seu “segundo estágio”5, consolidando a “aliança operário-camponesa”; resultando em seu isolamento e subsequente liquidação por ação da polícia política e da capitulação. Tal estratégia, obviamente, era incorreta (como demonstrou o fim desta organização), porém guarda seu valor pela importância com que toma o campo para a luta armada, para desenvolver a “guerra revolucionária do povo”6.

“Guerrilheiro”, publicação da ALN, 1970

Em defesa de um revolucionário

O resgate histórico de Marighella, de seus acertos e erros, de suas justezas e incompreensões, perpassa por reconhecer nele um revolucionário, um comunista convicto e dedicado na luta pela conquista do Poder. O filme de Wagner Moura, em que pese suas boas intenções, contribui para uma leitura romantizada – impulsionada dentro e fora do Brasil pelo revisionismo e pela burguesia – de um Marighella proto-anarquista em desespero existencial após assistir ao suposto fim da democracia (burguesa). Ali, a luta armada justifica-se não como uma necessidade que toda revolução precisa enfrentar, mas sim como tática de autopreservação, cujo fim é o retorno à “democracia” precedente. Essas loas à democracia burguesa eram posição, não de Marighella, que defendia o estabelecimento de “um governo revolucionário do povo”7, mas a da linha oportunista de direita do PCBrasileiro, com a qual ele rompeu!

Na sociedade brasileira, desde a chamada redemocratização, se convencionou uma verdadeira conversão de revolucionários em “ídolos inofensivos”. Aproveitando-se da memória e reconhecimento histórico que têm as massas por figuras como Marighella, o oportunismo e o revisionismo, tal como a burguesia, impulsionam suas imagens quase que na função de um mito fundador da redemocratização: esta Nova República, portanto, o velho Estado como existe, seria a recompensa histórica do sacrifício abnegado dos revolucionários.

Clarificar o conteúdo político da luta de Carlos Marighella é, portanto, essencial para fazer um balanço correto de seu lugar na história; para lutar contra o esvaziamento de sua obra teórico-prática numa perigosa romantização; para sua defesa como grande revolucionário.


Notas:

1- Como escrito no Pronunciamento do Agrupamento Comunista de São Paulo (1968)

2- A título de exemplo temos o documento Alguns Aspectos da Renda da Terra no Brasil (1958), no qual Marighella caracteriza corretamente que no campo brasileiro desenvolve-se uma economia atrasada, baseada nos “métodos feudais e semifeudais de exploração” e no monopólio feudal da terra, conservados com a “penetração e o domínio do imperialismo no país”. Marighella chega a conclusões em alguns aspectos parecidas com a tese maoista do capitalismo burocrático no campo, que seria definida plenamente pelo Partido Comunista do Peru na segunda metade do século XX.

3- Carta… (1966)

4- Rádio Libertadora

5- O terceiro seria o da “guerra de movimento”, como posto em Algumas Questões Sobre as Guerrilhas no Brasil (1967)

6- Sobre problemas e princípios estratégicos (1969)

7- Rádio Libertadora