Cantos de Trabalho e Resistência Camponesa

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Os cantos de trabalha são cantigas cantadas em conjunto pelos camponeses durante a realização de uma tarefa, como o corte da cana-de-açúcar, a bata do feijão e a colheita de arroz. Eles possuem, inerentemente, ritmo e andamento musicais, que se estendem além da música, passando a governar também o ritmo e andamento do trabalho em si.

A origem histórica dos cantos de trabalho brasileiros se dá na África, e vem para o Brasil trazido pelos negros escravizados, juntamente com uma miríade de outras práticas culturais – inclusive religiosas (1) – e instrumentos e/ou o conhecimento para fazê-los. Tal legado é deveras claro, pois não é somente na América Portuguesa que tais pessoas construíram essas tradições musicais, mas também, por exemplo, nos EUA, em especial nas plantações do Sul.

Entretante, tais cantigas têm matriz ainda mais remota, sendo, provavelmente, uma das formas elementares de música na sociedade humana. Por estarem ligadas a atividades primordiais, como o plantio, a colheita e o lavrar da terra, sempre realizadas em conjunto, sua origem se perde no tempo. Sabe-se, porém, que além da esfera religiosa, a música sempre cumpriu papel organizacional dentro do trabalho. É ela que proporciona, por exemplo, um ritmo seguido por atividades repetitivas, como a bata do milho, a pisa do cacau ou a produção de farinha.

Um discurso muito presente dentro da etnomusicologia e do estudo de música dita tradiconal é de que há sempre um risco de desaparecimento iminente. Isto, na realidade, é pouco específico e muitas vezes errôneo. Na década de 70, o cineasta brasileiro Leon Jorszman produziu um documentário sobre o tema, Cantos do Trabalho, separado em três partes: Cana-de-Açúcar, Cacau e Mutirão (Documentário). Nele, é afirmado categoricamente que tal fazer musical está em extinção e que a “industrialização” e a modernização do campo, em conjunto com a introdução de novos meios de comunicação” condenou as cantigas ao esquecimento.

Na mesma época, em outras partes do mundo, etnomusicólogos desesperadamente corriam para gravar, escrever e documentar “músicas tradicionais” de povos indígenas, camponeses e populações isoladas, sob o mesmo discurso de inevitável perda. Na República de Tuva, o Khoomei(2), muito ligado à religiosidade animista local, passou por esse processo (em conjunto com práticas semelhantes na Mongólia e Sibéria), entretanto, esse tipo de canto existe até hoje, performado por músicos jovens em diversos contextos (3).

Na Suíça, em 1988, Hugo Zemp documentou e analisou o Iodelei(4) (lá chamado de Jüüzli) na vila de Muotathal, alertando ao espectador que a prática estava sendo esquecida e que as competições organizadas pela Associação Federal de Iodeleis alteravam sua forma original.

Certamente os cantos de trabalho serão profundamente modificados, mas não necessariamente sumirão. A tradição europeia de música influenciou uma série de cantos tradicionais e outras formas de fazer musical que não se encaixavam em seus modelos. No caso do já citado Iodelei e das bandas de pife do Nordeste, as afinações pouco usuais, utilizando uma terça neutra – som entre uma terça maior e uma terça menor – numa escala de dó, seria a nota mi abaixada em um quarto de tom – e outras notas modificadas foram lentamente sumindo, em prol das afinações que condissessem com o padrão europeu de temperamento igual a 12 notas. Entretanto, ainda existem diferenças de afinação nos rincões mais afastados e dentro de grupos cujos músicos querem manter sua “tradicionalidade”.

Na realidade, os cantos de trabalho, assim como outras práticas culturais, somem quando são forçados a tal, quando as condições materiais que proporcionavam sua existência se alteram e não há motivo para sua preservação. No caso das músicas indígenas, diversos etnomusicólogos, etnógrafos e antropólogos como Frances Densmore se deslocaram aos cantos mais longínquos para entrevistar e gravar os músicos dos povos, mas levando consigo sua pesquisa, nunca desenvolvendo nada a essas pessoas. Quando muitos desses povos foram dizimados, morreu junto deles suas práticas musicais. Quanto aos cantos de trabalho no USA, os senhores de terra proibiram a utilização de instrumentos e, muitas vezes, do próprio canto. Tais práticas migraram para um contexto religioso, com corais, geralmente em igrejas protestantes restritas a pessoas pretas, por causa das leis de segregação racial. A música, portanto, só some quando desaparece consigo um povo inteiro.

No Brasil, os cantos de trabalho são, em sua grande maioria, realizado em áreas e durante atividades que, historicamente, foram realizadas por escravizados (às vezes em conjunto com trabalhadores “livres”). Aqui, a atividade primária era a agricultura, e outras que se relacionavam a ela, somada à pesca e à pecuária. Até hoje, as condições materiais deste trabalho e dos camponeses se modificou muito pouco. Ainda seguem sob o domínio de latifundiários e submetidos a servidão, com a meia, a terça e o barracão na produção sendo maior exemplo disso. Estas primeiras consistem num sistema onde metade ou um terço do produzido por um camponês na terra é roubado pelo latifundiário que manda da terra.

Embora ainda haja a argumentação de que os cantos de trabalho estão fadados ao esquecimento, e que a geração de trabalhadores vivos hoje é a última que ainda canta enquanto trabalha, é evidente que essas práticas estão de fato se modificando. As cantigas, antes utilizadas somente durante o trabalho, se misturam e migram com outras cantadas durante festas e celebrações. Esses espaços servem para a manutenção dessas práticas culturais. Entretanto, dada a intensificação da exploração e manutenção das relações de trabalho semi-feudais no campo, enquanto se aprofunda a industrialização e dispersão do proletariado nas cidades, empurram os cantos de trabalhos, coletivos, a mudarem sua forma e serem ameaçadas de morte.

Apenas a Revolução Agrária, primeiro passo da Revolução de Nova Democracia, de caráter anti-imperialista, com a destruição completa da propriedade privada pode garantir o desenvolvimento da cultura popular livre das amarras do imperialismo e do mercado, impulsionando a livre expressão do povo em suas mais variadas formas.

Notas:

(1)Muitas das tradições musicais brasileiras com clara matriz africana, como o Samba, possuem características também encontradas em religiões da mesma origem, como o Candomblé e a Umbanda. Uma delas é a síncope, que vai sendo introduzida no ideário musical brasileiro a partir de músicos que frequentavam ou haviam frequentado espaços onde ela ocorria num caráter religioso

(2)Khoomei – Tuvan Throat Singing

(3) Recentemente, a banda mongol The Hu fez parte do time de compositores chamados pela Eletronic Arts, empresa estadunidense de jogos digitais, para escrever uma música usando essa prática sonora ( e outros elementos tradicionais) para o jogo Jedi: Fallen Order.

(4)Voix de tête, voix de poitrine – Jüüzzli du Muotatal