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O significado dos Guardas Vermelhos

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O texto a seguir é parte de uma série de textos publicados por AND em razão da comemoracão aos 50 anos da Grande Revolução Cultural Proletaria.

Logo após a realização da 11ª Sessão Plenária do VIII Comitê Central do Partido Comunista da China (PCCh), realizada de 1º a 12 de agosto de 1966, e a publicação do ‘Documento de 16 Pontos’ e da Decisão do Comitê Central do PCCh sobre a Grande Revolução Cultural Proletária (GRCP), surgiram os grupos de Guardas Vermelhos que se multiplicaram.

Um novo grupo ligado diretamente ao Comitê Central do PCCh, Grupo Executivo da Revolução Cultural, foi criado e nomeados para compô-lo destacados quadros do partido como Chen Po-ta, Chiang Ching, Chang Chun-chao, Yao Wen-yuan, entre outros, conferindo aos trabalhos de direção da GRCP uma nova fisionomia e um grande impulso.

No seguinte 18 de agosto, mais de um milhão de Guardas Vermelhos fizeram sua primeira grande manifestação pública na Praça Tiananmen, em Pequim. O Presidente Mao passou em revista os batalhões de jovens que, orgulhosos, com suas braçadeiras vermelhas, saudavam o grande timoneiro entoando canções revolucionárias e palavras de ordem. Em oito ocasiões, entre o histórico 18 de agosto e 26 de novembro, o Presidente Mao Tsetung recebeu mais de treze milhões de Guardas Vermelhos e a essa altura, nada nem ninguém podia deter o avanço da GRCP.

“Que Pequim vá ao restante do país!”. Atendendo a esta voz de comando do Presidente Mao Tsetung, o Exército Popular de Libertação colocou seis mil caminhões a disposição dos Guardas Vermelhos, que a todo momento chegavam a Pequim vindos de todas as partes. Legiões de Guardas Vermelhos se dirigiram a pé, de trem, barco, caminhão e bicicletas a todo o vasto campo da China para difundir a Grande Revolução Cultural Proletária e atrair milhões para aprofundar a luta de classes. Empreenderam verdadeiras “longas marchas” de até 1.000 quilômetros, passando por fábricas e comunas para propagar a Revolução.

Nas fábricas, intervinham paralisando a produção e organizando palestras e debates. Esta intervenção, que a princípio provocou desordens nos cronogramas de trabalho e na organização da produção, representou de fato um grande salto com o ingresso de milhões de massas de proletários na GRCP.

A atividade catalizadora dos Guardas Vermelhos, assim como foi decisiva para o despertar das massas de todo vasto interior da China, foi também para que o proletariado fabril criasse suas próprias organizações revolucionárias, designadas por eles mesmo de “rebeldes” ou “rebeldes proletários”.

A importância dos Guardas Vermelhos é indiscutível e seu papel foi determinante para anunciar a Grande Revolução Cultural Proletária e tornou-se um movimento irresistível que levou a “Decisão de 16 Pontos” do Comitê Central a todo o país.

O papel desempenhado pelos guardas vermelhos*

A atividade da Guarda vermelha respondeu a dois objetivos principais: o primeiro de tipo psicológico e o segundo de caráter político. Ambos tinham como finalidade aumentar o número de participantes voluntários na realização da Revolução Cultural Proletária.

Em agosto de 1966, esta participação apresentava um desenvolvimento muito desigual. Havia suscitado debates e efervescência nas universidades e cursos preparatórios, porém, em menor medida nas fábricas e oficinas. Por outra parte, a revolução cultural se desenvolvia e se concentrava sobretudo em Pequim e, em uma escala menor, em Cantão e Xangai que haviam sofrido também sua influência. Como consequência, era necessário modificar esta situação.

Para começar, era preciso atingir as consciências por meio de manifestações espetaculares e aportar provas palpáveis de que a luta de classes entre o proletariado e a burguesia ainda não havia desaparecido. Uma vez que se houvesse logrado criar esta atmosfera, se poderia incorporar mais facilmente a população no movimento. Bruscamente e com toda a força que pôde demonstrar, o aparato de propaganda do Partido focou em suas baterias sobre os guardas vermelhos de Pequim, que ao sair dos recintos de suas escolas se espalhavam por toda a cidade. Uma de suas primeiras ações consistiu em renomear as ruas e lojas que evocavam a antiga China imperial e recobrir com pintura branca as esfinges dos mandarins pintadas nos pórticos de madeira do Parque do Palácio de Verão. Este passo tinha como objetivo fazer ressaltar, partindo de um exemplo muito simples e compreensível para todo mundo, a persistência das influências feudais no seio do regime socialista. Esta ação fez com que os guardas vermelhos fossem qualificados de maneira demasiado exagerada de iconoclastas fanáticos pela imprensa ocidental. Contudo, destruição e o vandalismo foram fenômenos muito limitados porque as autoridades haviam tomado a precaução de fechar os museus e proteger os monumentos desde os primeiros dias da revolução cultural1 .

A segunda ação empreendida pelos guardas vermelhos foi indagar e investigar as casas dos antigos capitalistas e proprietários de bens e imóveis. Nessas casas, confiscaram ouro, joias, cachimbos e reservas de ópio, que os antigos proprietários conservavam, assim como armas e velhos títulos de propriedade. Estes feitos foram divulgados pela imprensa chinesa e os objetos requisitados foram expostos ao público e apresentados como provas de que a burguesia seguia existindo e que ainda não havia perdido a esperança de que voltariam os “bons tempos”. Estas ações dos guardas vermelhos foram acompanhadas, em algumas ocasiões, por inúteis violências que contribuíram para criar a imagem pouco lisonjeira que lhes traçou a imprensa ocidental, embora deformando e exagerando sempre os fatos e sua verdadeira magnitude.

A direção comunista se encarregou, mediante artigos e filmes e diversas emissões radiofônicas, de familiarizar todos os chineses à atividade destes jovens que se viam desfilar aos enxames pelas ruas da capital. A imprensa não escamoteava os elogios dedicados a estes guardas vermelhos hostis a toda ideia conservadora, puros e generosos em suas aspirações. Desta maneira, a imprensa preparou a opinião pública em vistas da segunda fase de seu movimento que não tardou muito tempo em produzir-se e que se estendeu durante vários meses, enquanto a primeira fase, que acabamos de descrever, não durou mais que três semanas.

Esta nova etapa se propunha a alcançar um objetivo mais complexo: se tratava de que estes jovens estudantes dos cursos preparatórios e universitários estendessem o fogo da Revolução cultural a todo o território da China. Dado que os jovens intelectuais não estavam integrados na produção e não estavam cercados pelas moléstias das rotinas profissionais ou de outro tipo, sua liberdade de espírito e seu sentido de iniciativa não haviam sido mutilados pelos enredos burocráticos. Os guardas vermelhos estavam menos inibidos que alguns de seus superiores e pouco dispostos a respeitar uma disciplina. É certo que lhes faltava muita experiência, porém esta carência tinha um aspecto positivo, porque seus ideais ainda não haviam sido extinguidos pelas provações ou as decepções. Portanto, os guardas vermelhos constituíam o fermento ideal para sublevar uma sociedade que corria o perigo de esclerosar-se, pela falta de controvérsias internas. Graças a influência destes jovens, se propagou o costume de questionar, de falar alto e livremente. A habilidade de Mao Tsetung e seus partidários se demostrou na forma em que souberam utilizar esta força dentro do marco de sua estratégia geral, sem com isso deixar se perder a espontaneidade dos jovens, orientando-a sempre para a preservação e reforço do ideal revolucionário e não para um estéril rechaço do mesmo.

Portanto, os guardas vermelhos deviam aportar seus ideais, seu entusiasmo e seu espírito crítico até aqueles centros em que o movimento não se havia propagado mais que em forma medíocre e, ao mesmo tempo, deviam estimular a investigação e a crítica dos quadros que haviam escolhido o caminho capitalista, dos direitistas e dos “bandidos negros” da fração de Peng Cheng.

Anteriormente estava implícita a existência de guardas vermelhos em todas as partes. Em Shangai, outra cidade de vanguarda, haviam surgido em grande número e algo similar ocorriam em Cantão e na maior parte das cidades chinesas. Assim mesmo, era conveniente que os guardas vermelhos pudessem circular livremente pelo país e pudessem chegar até os lugares em que o movimento revolucionário havia se estendido pouco, o que não era raro naqueles momento iniciais.

Acaso o ponto três da Declaração de 8 de agosto não precisava que “em vários organismos, os responsáveis ainda entendem muito mal seu papel de dirigentes nesta grande luta” e que “sua direção está longe de ser séria e eficaz”?

A direção do Partido Comunista da China animou os guardas vermelhos para que se deslocassem por toda China para efetuar os Chuan-lien, ou seja, para participar nos intercâmbios de experiências revolucionárias. Foram adotadas medidas especiais para que a maioria dos guardas vermelhos do interior pudessem vir a Pequim para informar-se sobre o que havia ocorrido, tomar exemplo dos revolucionários da capital e atuar como eles em seu regresso as suas cidades de origem. Por sua parte, os guardas vermelhos de Pequim viajavam às províncias para relatar suas lutas e incitar as pessoas que encontravam para que examinassem as atividades dos quadros do Partido e tratassem de descobrir se entre eles havia promotores da linha negra. Os animavam a redigir cartazes, a se organizarem para resistir aos abusos e medidas burocráticas de certos responsáveis. Ademais, os guardas vermelhos de Pequim davam a conhecer as diretivas do Partido e a Declaração de 16 Pontos, procuravam sua discussão e compreensão. Em efeito, se tratava de mobilizar milhões de homens e, em vários lugares afastados, as informações circulavam muito mal ou demasiado lentamente. Em certos casos, as pessoas mais velhas ou relativamente velhas não sabiam ler ou não tinham o costume de fazê-lo. Ademais, algumas vezes, certos quadros do Partido restringiam a difusão das notícias provenientes da capital. Estes eram os motivos que justificavam a extraordinária importância da propaganda oral realizada pelos guardas vermelhos. Se puseram a disposição destes viajantes transportes gratuitos, ainda que alguns deles se deslocassem também a pé, renovando assim as tradições do exército comunista chinês.

Alguns guardas vermelhos realizaram deslocamentos consideráveis. Vários destacamentos empreenderam “longas marchas” de mais de mil quilômetros. Durante o transcurso destas caminhadas, os guardas vermelhos se detinham nas comunas, nas fábricas, participavam nos trabalhos manuais, distribuíam as citações do Presidente Mao Tsetung. Algumas vezes estas citações do Presidente Mao eram impressas pelos mesmos guardas vermelhos em pequenas impressoras portáteis, muito ligeiras, que eram um de seus atributos característicos. Os guardas vermelhos davam a conhecer por todas as partes o famoso pequeno livro vermelho de citações de Mao Tsetung, que até então não era popular além do exército e que a partir deste momento se difundiu até alcançar uma importância histórica inigualável.

Depois da 11ª Sessão Plenária do Comitê Central, havia se decidido a publicação em massa das obras de Mao assim como da breve, porém célebre seleção de suas citações. O pequeno livro vermelho, que os chineses agitavam alegremente em suas reuniões ao longo de toda a Revolução cultural, foi concebido para ser utilizado pelos soldados do Exército Popular de Libertação em 1965. De maneira concisa, as citações apresentavam as ideias fundamentais de Mao Tsetung sobre diferentes problemas: a luta de classes, o Partido Comunista, a guerra e a paz, a literatura e a arte, as relações entre o exército e o povo, etc. A partir de agosto de 1966 se publicaram centenas de milhões de exemplares do pequeno livro vermelho: era um meio engenhoso de pôr ao alcance das massas chinesas os aspectos essenciais do marxismo.

Em Pequim, a recepção dos guardas vermelhos foi organizada pelos militares de maneira notável: providenciou seu alojamento, seu abastecimento e transporte de tal forma que a capital pôde acolher, durante quatro meses, um milhão de habitantes suplementares, cuja presença era constantemente renovada, sem que por isso nem os transportes nem os abastecimentos normais fossem seriamente perturbados, o que revela um giro extraordinário que somente pode ser realizado pela organização de um regime como o maoísta.

As ruas da cidade adquiriram um aspecto pouco habitual: jovens mongóis com botas, vestidos com longas túnicas de franjas claras, passava ao lado de Uiguros de trajes multicores típicos da longínqua província de Sinkiang. Entre os guardas vermelhos provenientes desta região do oeste da China, que durante muitos séculos foi a encruzilhada de diversas correntes migratórias, se distinguiam, ao lado dos tipos locais bastante puros, próximos da etnia turca, alguns com cabeleira ruiva e olhos azuis. Também vieram jovens tibetanos de pequena estatura e rosto curtido pelo vento das altas montanhas, envolvidos em grandes e grossos abrigos de vivas cores e cobertos com chapéus de feltro de aba larga parecidos a dos índios do Peru. Nas tendas, jardins e restaurantes, se escutavam os mais diversos dialetos e timbres. Toda a China estava em Pequim, representada por suas prodigiosas multiplicidade e variedade.

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Notas

* Texto extraído do livro “História da Revolução Cultural Proletária na China” do escritor francês Jean Daubier.

  1. Foi dito que os guardas vermelhos queimaram livros. Eu jamais testemunhei fatos semelhantes, me parece um excesso. Em uma comarca de Pequim, os guardas vermelhos destruíram os leões de pedra e, em outro lugar, um baixo-relevo. Em um cemitério, profanaram tumbas. Os dirigentes da Revolução cultural condenaram estes atos que, em nenhum momento, tomaram envergadura. Não tem fundamento escrever, como fez uma grande revista francesa, que destruíram “pelo ferro e pelo fogo” os tesouros de arte da antiga China. A morte do escrivão Lao She sucedeu em condições obscuras e atribuir a responsabilidade direta aos guardas vermelhos significa ir muito além dos dados da informação atual. ↩︎