Crítica publicada pelo Jornal A nova Democracia, escrito por: Daniel Moreno
O novo filme de Adam McKay para a Netflix, “Não olhe para cima” (Don’t Look Up, 2021), foi meticulosamente planejado para gerar engajamento, para vender-se como um evento – desde sua escolha de elenco até sua promoção. De maneira igualmente meticulosa, dirige-se diretamente a um sentimento de desamparo político e social legítimo frente às crises de nossa era, oferecendo, nos entremeios de seu purgatório, no máximo, um diagnóstico liberal do estado atual de coisas; e no mínimo, um sentimento de superioridade moral para aqueles que “se importam” à distância, os que “enxergam o problema” – os que “olham para cima”.
Esse tipo de crítica liberal não é necessariamente uma novidade no cinema norte-americano, que é historicamente marcado por seu humanismo, desde Charlie Chaplin até Sidney Lumet. Mas é um sinal dos tempos que, confrontado com tamanha decadência social, econômica e política nos EUA, tal preocupação humanista empacou e, como água parada, começou a infeccionar-se.
O filme toma o ponto de vista de um trio de cientistas frente uma sociedade hostil, idiota e corruptora frente um “agente externo” – um asteróide devastador, alegoria simultânea à mudança climática e à pandemia. O filme tenta manejar essa desgraça toda com um tom de sátira e de piadas fáceis, até porque de outra maneira seria intragável para o público-alvo do filme. O resultado é de uma inconsistência tonal delirante [1], bem nesse espírito “contemporâneo” que palpita entre a autocomplacência, a angústia social e a chacota – expresso sobretudo no ethos das redes sociais.
“Não olhe para cima”, como nos outros filmes recentes de McKay, é um projeto de boas intenções, que tem certeza de que sabe o que está fazendo, que abraça a sua atualidade e o dever de ser claro e incômodo. Todavia, a que pese o caráter objetivamente universal desse agente externo (o que explica seu sucesso internacional), não nos deixemos enganar – é um filme absolutamente norte-americano em sua concepção, forma e função, expressão do atual estado de ânimos em seu país.
Vale a pena levantar algumas limitações de sua crítica social, porque esta é expressão de uma época histórica, assim como de um estado de espírito da cultura política norte-americana.
AS ‘ELITES’ MALDITAS
Partindo desse espírito, o filme se desenvolve como uma tragédia clássica – inicia com uma “profecia”, seguida de tentativas de fugir do destino e terminando com os protagonistas “furando os próprios olhos” por não aguentar ver tal profecia se cumprindo.
Após os cientistas descobrirem a realidade do cometa, apelam para que os políticos olhem para cima, mas são vencidos pela indiferença e ganância; apelam para que a imprensa olhe para cima, mas são vencidos pela decadência e pelos memes; apelam, através do onguismo, para que a “opinião pública” olhe para cima, mas são vencidos pelas fake news e pela estupidez. Terminam, ao fim, resignados, em comunhão com o núcleo familiar (à semelhança do final niilista de Melancolia (Melancholia, 2011, de Lars von Trier) na patética cena dos ateus rezando “no avião caindo”, ainda que de maneira performática.
No entanto, diferentemente de Melancolia, a tragédia não está no asteroide em si, mas no fato de que seu impacto é evitável. Ao focar na questão do gerenciamento da crise, as conclusões do filme são de grande escopo, para muito além da questão ambiental. Isto é um aspecto muito importante aqui, é onde reside todo o seu conteúdo político, desde o diagnóstico do problema nas “elites” à possível “solução” dada – ainda que nas entrelinhas.
Nota-se na obra recente de McCay um reflexo bem-acabado de uma característica da cultura política dos EUA, a sociologia da Teoria das Elites (Elite Theory), na qual a sociedade seria constituída por uma aristocracia conspiratória de “poderosos” (muitas vezes representados como as “grandes corporações”), que tudo controlam, contra um grande rebanho de massas desamparadas. A particularidade de McKay é que ele enxerga essas “elites” não só como moralmente corruptas e repugnantes em sua totalidade, mas também como incompetentes, o que abre brecha para a comédia. Pelo papel dirigente que elas ocupam, isto significa catástrofe.
Essas ideias se expressam em seus últimos filmes. No biópico “Vice” (2018) o ex-vice-presidente Dick Cheney manipula, quase sozinho, todo o globo para a guerra, como um habilidoso enxadrista. Em “A grande aposta” (The Big Short, 2015), do qual “Não olhe para cima” nada mais é que um remake, a crise dos subprimes de 2007-2008 é prevista, advertida e poderia facilmente ser contornada não fosse a ganância abjeta de um punhado de acionistas estúpidos.
Por mais “de esquerda” que possa se pintar este conceito, trata-se do núcleo do pensamento tanto dos “liberais” quanto dos “conservadores” norte-americanos, além da sua extrema-direita. Basta ver a ênfase paranóica da vida política desse país a figuras como Mark Zuckerberg, Elon Musk e George Soros, além das mais esdrúxulas teorias da conspiração. Tais ideias negam ou mistificam o caráter de classe do Estado e da luta de classes; simplificam o sistema capitalista aos pensamentos e vontades dos capitalistas, seja na forma de indivíduos parasitas ou pequenos grupos que “administram a sociedade”. Isso abre espaço para a demanda por regeneração social e das instituições – que pode ser capturada tanto pelo reformismo como pelo fascismo [2].
ELITES, TÉCNICOS E MASSAS
Por outro lado, o grupo de cientistas, os técnicos, apesar de vacilantes, formam a única categoria social dentro da alegoria que não parte de nenhum interesse próprio. Isso tem implicações políticas relevantes, porque representam, em meio ao catastrofismo do filme, um lampejo de alternativa.
Isso está destilado naquela que é a cena mais importante do filme: os técnicos conseguem convencer momentaneamente a presidente do USA a olhar pra cima e explodir o meteoro. O foguete com explosivos é enviado… Mas o plano é sabotado por interferência de um lobista megalomaníaco. Aqui está o argumento: se as diretrizes dos cientistas fossem obedecidas sem rodeios pelo Estado, a catástrofe poderia ser evitada. Após essa interferência, tudo foi perdido; isso é confirmado pelos personagens posteriormente.
Aqui localiza-se o centro da tragédia: o USA seria inflexivelmente organizado de tal modo que os únicos que podem impedir o desastre são um punhado de egoístas e canalhas, e isso é motivo para desespero… Mas a “solução” está aí, nas entrelinhas: se o “sistema” ouvisse a voz dos especialistas, tudo poderia ter dado certo naquele exato momento.
A ciência aqui aparece como pura técnica, como força neutra. Mesmo a ciência corrupta, a que está a serviço do lobista, só é apresentada como tal porque suas conclusões não passam por peer review (ou seja, revisão de pares da comunidade científica). Os cientistas, técnicos, especialistas, deveriam ser a vanguarda humana em época de crise… mas, pragmaticamente, isso não pode ser alcançado devido à centralização de poder numa elite que administra a sociedade e está submersa na politicagem e na ganância.
Bem, se esse é o diagnóstico, a quem se dirige então a convocação de olhar para cima? Melhor dizendo, quem, ao olhar para cima, pode solucionar o problema? A conclusão que se tira da cena onde tudo quase deu certo é somente uma: às mesmas “elites” e chefes de Estado que o filme está criticando. É aí que a demanda civilizatória contra as “elites”, através dessa concepção, se torna completamente estéril. No pior dos casos, ela se tornaria uma posição tecnocrata de cabo a rabo, de que bastaria seguir a ciência, os especialistas; montar gabinetes com técnicos e não políticos – posição que tem ganhado muito espaço no decorrer da pandemia, e que desenvolve-se erguendo necessariamente um desprezo completo das massas…
Por que, enfim, onde elas estão? Para o filme, as massas são forças completamente reativas, tão manipuladas e alienadas que, quando não estão diretamente atrapalhando, também não alteram o curso das coisas. Assume, para a crítica das “elites”, um ponto de vista literalmente elitista, olhando para baixo. Reconhece, de fato, que elas estão em disputa; mas o máximo a que podem servir é em pressionar pela moralização do Estado e o controle das “elites”. Mesmo que elas também devam olhar para cima, é para, em última instância, pressionar os “poderosos” a fazê-lo também (uma vez que estes seriam o fator social principal); consolidando o prestígio dos especialistas na sociedade, como intermediários.
ERA DE CRISE
Essa cena reconfigura o filme inteiro e consegue unir o pânico catastrofista com a crítica às “elites”. Apesar destas serem subumanas, são elas que controlam tudo, então é delas a responsabilidade de tudo, de todo o planeta. O resto do mundo aqui é um mero apêndice do USA, o fracasso do USA é o fracasso da humanidade. Além do quê, o resto do mundo de fato é irrelevante na narrativa, nem ao menos se explica o porquê da tentativa comum de outros países ter fracassado – como já colocado, este não é um filme de pretensão universalista, mas especificamente sobre a crise de representatividade norte-americana.
Todavia, é impossível não considerar o lugar que o USA ocupa no mundo, de império em decadência. A “geopolítica” aqui nada mais é que a expansão da Teoria das Elites ao nível dos países, seguido de todas suas conclusões lógicas: o USA (portanto, as “elites” do USA) têm responsabilidade direta pelo que acontece no mundo, mas são muito decadentes para salvar-se e aos demais.
É exatamente através dessas ideias que têm se construído um clima político reformista de tipo alt (alternativo) no USA nesses últimos anos. McKay é abertamente alinhado à crescente demanda por moralização e “renovação” do Partido Democrata ianque – representada por figuras como Bernie Sanders e Elizabeth Warren e suas propostas de “Novo Acordo Verde” (Green New Deal), de “Taxação de Grandes Fortunas”, de anti-lobismo, etc. É nesse sentido que deve se ver a personagem da presidente no filme, caricatura ora dos democratas, ora dos republicanos. Ou seja, reflexo dum espírito de “rejeição” da velha política sujeita às “elites” econômicas lobistas e em favor de uma moralização do estado frente a seu povo e ao mundo. Acontece que a direita norte-americana têm se reorganizado sob o mesmo espírito, e os slogans de Trump sobre “drenar o pântano” se dirigiam exatamente aos lobistas.
A catástrofe ambiental, com seu atributo despersonalizado e de inimigo de todos, veio a substituir no ideário norte-americano o espaço cultural deixado, desde o fim da Guerra Fria, pela aniquilação nuclear. “Não olhe para cima” se destaca pelo didatismo, por possibilitar ler nos entremeios de suas palhaçadas e angústias, ainda que relutantemente e por exemplo negativo, um possível “programa mínimo” necessário para controlar a crise: há que tentar moralizar o Estado, dividir o comando de setores-chave com os técnicos, responder administrativamente às demandas das massas, servir de vanguarda para o mundo… e salvar a ecologia. Posto dessa forma, estaríamos num campo de direita.
Mas McCay nunca chega a ser tão assertivo, porque também sente-se vencido. É sobretudo o estado de crise que faz com que o reformismo liberal, seguindo todas as ferramentas ideológicas que lhe são próprias, dê de cara com uma realidade implacável e só consiga produzir o pessimismo. Há uma correlação entre o que os protagonistas tentam fazer e o que McCay acha que está fazendo ao lançar esse filme. E, da maneira que as massas são apresentadas no filme, McCay deve temer que sua audiência seja igualmente desconfiada quanto à sua nobre tentativa de matar a burrice no grito.
A demanda por civilização e transparência é justa e ressoa, mas os próprios meios da crítica liberal levam ao desespero, à capitulação do “pelo menos tentamos”; ao limite pragmático, pouco criativo, acorrentado ao segundo que passa. Vale a pena, então, confiar nas massas, rejeitar a tentação da misantropia e olhar para frente.
NOTAS:
1 – A exemplo de uma cena catártica onde o cientista interpretado por Leonardo DiCaprio explode, pedindo por seriedade e pelo fim da abordagem “agradável” da televisão – que ameniza a dureza da tragédia – enquanto é isso que o filme, de certa forma, vem fazendo até então.
2 – Vale a pena rememorar que, no início da social-democracia, o marxismo precisou se livrar dessas concepções nas duras lutas contra Eugen Dühring na Alemanha e Georges Sorel na França; é fato conhecido que o primeiro foi retomado posteriormente pelos nazistas e o segundo pelos fascistas italianos.